Cartas da Quarentena

Diante da pandemia do novo coronavírus, a principal recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é o isolamento social. A rotina de reuniões, audiências e encontros na luta pela reparação do crime está interrompida por tempo indeterminado. Agora, os(as) atingidos(as) enfrentam não só a saudade das comunidades, mas também a angústia de estarem presos em casas provisórias e, além disso, de não poderem estar juntos(as), unindo forças contra as empresas criminosas, que seguem se aproveitando de brechas e momentos de fragilidade para agir. Há pelo menos dois meses mantendo o isolamento em suas casas, os(as) atingidos(as) compartilham as preocupações e as mudanças da nova rotina.

Por Maria Carneiro (Lilica), Marquinhos Muniz e Simone Silva 

Com o apoio de Joice Valverde e Júlia Militão

O rompimento da barragem de Fundão, em cinco de novembro de 2015, só trouxe transtornos, insegurança e mais um monte de coisas que acontece na vida do atingido. É o mesmo que acontece hoje, com o vírus que tá aí, é muita preocupação. A gente viver em quarentena, se a gente estivesse no nosso local, naquele lugar pequeno, ter um lugar pra tá fazendo alguma coisa, a situação hoje seria diferente, teria aquele espaço da gente pra viver em quarentena, vejo que seria até mais fácil nesse sentido. A gente quietinho lá no pedacinho de terra que a gente tinha, estaria vivendo essa quarentena de modo mais tranquilo. Vamos dizer assim, tendo alguma coisa pra fazer, pra tá ocupando tempo, seria mais fácil de tá passando por isso. 

Marquinhos Muniz, morador de Bento Rodrigues

Eu vim pra Ponte do Gama, porque minha família mora toda aqui, e até mesmo pra não ficar sozinha em isolamento, em Mariana. Quanto mais gente na casa, numa situação dessa, é melhor. E não tá sendo fácil, não. Lidando com dificuldade, porque a gente não tem costume de ficar preso dentro de casa, né, mas a gente entende que é uma coisa que tem que fazer e só assim pra essa pandemia passar. Então é difícil sim, ver em outras regiões pessoas morrendo, é muito difícil lidar com isso, tem família que tá perdendo pessoas de suas casas, de suas vidas. O que me preocupa também é que tem pessoas que não estão botando fé que tem que fazer isolamento e não estão nem aí. Diante dos fatos que a gente passou pelo rompimento da barragem, agora vai ter mais dificuldade de tá resolvendo essa situação, vai prolongar mais pra frente. Eu acho mais interessante prolongar do que ficar resolvendo esse problema por internet ou por telefone. Então essa pandemia vai acabar prejudicando nessa parte também. Mas é fé em Deus e aguardar que isso tudo vai passar.

Maria Carneiro (Lilica), moradora de Ponte do Gama

Pra nós, como atingidos, pra nós, militantes, que somos atuantes mesmo na luta ao longo desses cinco anos, esse ano tem sido muito difícil, porque essa crise, essa pandemia tem nos impedido de fazer a luta. Enquanto nós estamos recolhidos dentro de casa, cuidando dos nossos, nos protegendo, os maus têm agido poderosamente. A cada dia, mais eu tenho certeza, infelizmente, que a justiça não é cega, a justiça é paga, e a gente tem visto ela atuar fortemente contra a luta coletiva. As empresas têm atuado de forma muito mais violenta do que elas já atuavam ao longo dos cinco anos. Tem ocorrido uma lista aí, de um abaixo-assinado, pedindo o fim do cadastro. Pra nós, atingidos, o fim do cadastro é, tipo, a morte de todo o processo, de toda a luta que a gente fez até agora. Quantas pessoas não tiveram acesso ainda ao cadastro? Quantas pessoas não têm noção dos seus danos, das suas perdas? Então tem sido muito difícil, porque a gente sofre com o medo, com a angústia de não saber se a gente vai passar por isso e vencer, se a gente vai estar vivo depois. E também tem a justiça, as mineradoras, que têm atuado de maneira massacrante pra nos atacar enquanto a gente não pode fazer a luta e eu acho isso desumano, covarde, e tem colocado a vida de muitos atingidos em risco, porque os atingidos estão se reunindo pra fazer concentrações e reuniões pra colher esses abaixo-assinados. E isso pode gerar a morte de muitos atingidos, devido à ação criminosa das empresas. 

Simone Silva, moradora de Barra Longa