ATÉ HOJE III: presos(as) dentro de casa

Por Gilmara da Conceição dos Santos Dias, José do Nascimento de Jesus, Ramila Cerqueira Mol, Renata Cristina Nascimento Silva, Vera Lúcia Aleixo Silva e Vinícios Rocha dos Santos

Com o apoio de Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo

O tempo possui essa teimosia de não querer ser controlado. Ele passa e transforma o seu entorno. Crianças que saíram dos territórios atingidos ainda bem novas, hoje, crescem em uma cidade que não se parece com suas comunidades. Muitos(as) responsáveis se preocupam com a socialização de seus(suas) filhos(as) neste espaço. Por outro lado, pessoas que sonhavam em estabelecer família em seus locais de origem são privadas de realizar o desejo.

Pra mim, nesses cinco anos, está tudo na pior, porque, até hoje, eu não tenho uma solução da Samarco. Tenho meu lote lá em Bento Rodrigues e, até hoje, nada foi resolvido. O que eu mais queria era ter construído minha casa lá, mas veio a Samarco e tirou todos os meus sonhos… Às vezes, as pessoas acham que eu ganho alguma ajuda da Samarco, mas vou deixar bem claro: não ganho. 

A Renova me fez uma proposta que eu não aceito, eles querem me pagar como filha de proprietária de Bento. E não, eu tenho o meu lote lá. Tanto que ele continua lá, não passou lama de rejeito nele, pois ele fica na parte alta, onde não chegou rejeito. A minha vontade é ir lá e construir minha casa, porque, até hoje, eles não me deram nenhuma solução, não me falaram como vão me entregar a indenização. Eu não quero indenização pelo meu lote, eu quero o meu lote de volta. Me chamaram uma vez, eu não aceitei a proposta e não me chamaram mais. Minha mãe e meus irmãos foram chamados para visitar um terreno no novo Bento, enquanto um outro irmão meu e eu não fomos chamados. Estou me sentindo excluída da proposta deles. Se o meu lote era junto do lote da minha mãe e irmãos, por que eu não fui conhecer o meu no novo Bento?

Hoje eu estou casada, tenho o meu filho de três aninhos. O meu sonho era ter construído a minha casa, ter meu filho dentro de Bento e ele poder ser criado igual eu fui: com liberdade, poder brincar na rua, poder ter mais amizades, já que, aqui na cidade, a gente não tem. Meu filho quase não brinca com vizinhos, só quando junta a família que ele se diverte com meus sobrinhos. Eu gostaria, sim, de ter construído a minha família dentro de Bento Rodrigues. 

Eu não tinha casa, tinha lote, mas eu creio que, com esses cinco anos, eu já não estava dependendo de morar de favor, igual hoje eu estou. Eu tenho certeza que eu já estaria dentro da minha casa.

Gilmara da Conceição dos Santos Dias, moradora de Bento Rodrigues

Foto: Juliana Carvalho

Às vezes, ficamos até sem explicação, vai passando o tempo e nem conseguimos mais explicar o que acontece com a gente. Está sendo bem difícil morar numa casa que não é sua. Sabendo que você tinha a sua casa e, hoje, você não tem mais, o tempo está passando e, até hoje, nada. Só ficam nos iludindo, dizendo que vai sair ano que vem. O ano que vem chega e não sai, vão jogando mais para frente. 

Se a gente estivesse lá no Bento durante a pandemia, tinha um terreno para a gente capinar, para limpar, divertir com as crianças da gente. Aqui, você tem que ficar preso dentro de casa, não tem terreno, não tem nada para você fazer. A gente acaba ficando nervoso, os filhos da gente começam também a ficar nervosos, porque não têm espaço. Quando aconteceu o rompimento da barragem, a minha menina estava com 10 anos, o meu menino, quando saiu do Bento, estava com cinco anos. Minhas crianças, desde que aconteceu o rompimento, não querem mais dormir sozinhas, ficam irritadas… Eles querem espaço para brincar, mas eu não tenho coragem de soltar meus filhos para rua em Mariana. Os meus filhos foram criados praticamente em roça, tenho medo de soltar meu filhos na rua e acontecer alguma coisa com eles. Se alguma coisa acontecer com os meus filhos, será que alguém vai me dar eles de volta?

O que mais sinto falta do Bento é a liberdade que eu tinha. Porque lá era um lugar sossegado, você tinha os amigos perto. Você tinha aquela felicidade de estar na sua casa, no seu lugar. Nossos sonhos foram todos embora.

Depois desses cinco anos, a sensação é de revolta. Ontem estivemos no Novo Bento, a gente estava esperando encontrar mais casas feitas, mas não tem nada. Durante cinco anos não tem nada. Eles ficam iludindo a gente durante esse tempo. Quem nos garante o nosso lar? Ninguém. Cinco anos, o tempo está passando e nada até hoje.

Ontem, no novo Bento, eu senti tristeza. Os atingidos, dos mais novos aos mais velhos, estão adoecendo, as pessoas estão morrendo, de jeito que os mais velhos não vão ver os lares deles de volta.  E nós, mais novos, será que vamos ver? Será que nossos filhos vão voltar para o lar deles, onde tinham liberdade? Eu só faço essa pergunta: será? E ninguém responde.

Eu cheguei aqui com o meu pai, em 2016, ele estava com esperança de voltar para a casa dele. Só que ele faleceu no ano passado. Ele não voltou para casa. O que mais nos revolta é isso: as pessoas estão morrendo sem voltar para o lar delas. Depois do rompimento, eu vivo de remédio. A minha liberdade e minha felicidade foram todas embora.

A única coisa que eu quero de volta é a minha casa. Eu sei que a minha felicidade e saúde não vão ser as mesmas. Não vai voltar ao que era antes. Eu só consigo pensar no futuro, no dia em que eu estiver dentro da minha casa.

Renata Silva, moradora de Bento Rodrigues

A demora é o que mais preocupa

Os problemas se acumularam ao longo desse tempo. Muitas pautas das comunidades atingidas ainda não foram atendidas. Atingidos(as) relatam sentir descaso da Renova em algumas questões, o que contribui para a demora da reparação. Os mais velhos temem nunca verem suas casas prontas.

Vai fazer cinco anos desse crime escandaloso e, nesses cinco anos, a luta nossa é demais. Eu vou todos os dias à obra e a gente vê que o andamento agora melhorou um pouco, a partir da metade do ano pra cá. Mas a espera é demais. Cinco anos e, praticamente, tem duas casas prontas. Então a gente fica sentido, a gente fica lamentando, porque, pra gente sair correndo pra não morrer foi rapidinho, ou corre ou morre, e, até agora, o reassentamento nosso tá numa lentidão, um atraso que não tem tamanho. Então a gente fica preocupado com esses problemas. A idade vai chegando e a gente não tem esperança de voltar pra nossas casas. A gente fica morando, até hoje, em lugar que não é da gente, mal acomodado, mal alojado, porque não é a nossa residência e isso atrapalha muito. Então isso, pra mim, é preocupante, é triste, lamentável, a lentidão da Renova com os reassentamentos. Não só o nosso, de Paracatu, todos os lugares atingidos e a recuperação do meio ambiente também me preocupa muito. Hoje parece que envolve muito dinheiro na Renova com os funcionários, tudo muito bem pago e nós, que somos atingidos, a gente não tem o que precisa e o que merece ser recompensado. Têm pessoas que ainda não receberam indenização, muitas. A demora é o que mais preocupa. A gente chegar, ver caminhão, caminhonete, carro pra baixo e pra cima, e casa levantando é muito pouca. É lamentável a gente ter que falar isso, porque tá faltando respeito com as comunidades atingidas, então eu acho que a Renova tem que raciocinar, tem que botar as coisas em prato limpo, ter mais agilidade, porque ela foi criada para sanar todos os danos e, até então, não tem nada. Só fala, promete e não cumpre. Todo mundo conhece minha maneira de ser. Verdade, eu não tenho medo de falar pra ninguém. Porque cinco anos, desses cinco anos, tinha que ter, no mínimo, só em Bento Rodrigues, umas 100 casas prontas. Coisas que não tem. Tem apenas duas casas prontas. Vou fazer 75 anos agora em novembro, dia 3 de novembro, dia 5 faz cinco anos e, até hoje, não tô na minha casa. Isso me preocupa e muito. Muito. Mas muito mesmo. Isso aí dói e dói demais. Fazer o quê? Renova, infelizmente, é assim.

José do Nascimento de Jesus, morador de Bento Rodrigues

José do Nascimento de Jesus guarda uma réplica de um objeto que a lama levou, no rompimento da barragem. | Foto: Juliana Carvalho

No início, quando teve a seleção de terreno, a minha família acompanhou tudo e até chegou a escolher o terreno na Lavoura. Só que foi passando um tempo e a gente viu que não era um terreno bacana, aí entramos em acordo e preferimos escolher algum terreno aqui em Mariana. E a gente achou que seria melhor, só que acaba que tem essa demora pro início de obra, que, até hoje, não se iniciou nada, nada. 

A gente até tá sendo atendido sim, mas também já tem um ano que estão empurrando com a barriga. Já assinaram os documentos, meus pais já foram no cartório, já registraram. Teve um problema com a questão de opção da minha madrasta com a irmã dela, porque os lotes são praticamente um só e foi dividido em duas partes. Aí, resolveram fazer a virada de lote, porque uma quer a casa virada pra rua e a outra não quer. Só pra essa mudança de virada de lote demoraram praticamente um ano pra resolver isso. Agora diz que tá resolvido e a gente tá aguardando a resposta pra início de obra. 

O reassentamento familiar deveria ser mais rápido, pelo fato da demanda de obra ser menor, mas também está muito lenta. E acontece que, quando a gente cobra uma resposta, eles dão um parecer que seria como se eles estivessem fazendo um favor para nós. Se pararmos pra pensar, se eles tivessem focado nessas obras do reassentamento familiar, pelo tempo que já tem, já teriam casas prontas a serem entregues.

Eu fico me questionando também o porquê das obras do Novo Bento estarem tão atrasadas, já se foram cinco anos e estamos vendo claramente a lentidão dessas obras. Claro que é uma obra grande e entendo que realmente não é feita da noite para o dia, há todo um projeto a ser feito, mas acontece que a Renova está focando muito em obras sem tanta tanta necessidade e urgência quanto às moradias, que são o que realmente importa. Por mais que a minha família tenha escolhido residir aqui em Mariana, eu não estou pensando somente em mim, mas estou pensando também nas famílias que foram retiradas à força dos seus lares e que estão aguardando respostas, que, infelizmente, estão demorando tempo demais. Enquanto isso, as obras que a Renova está realizando por fora estão indo a todo vapor, tirando total foco da obra do Novo Bento.

Vinícios Rocha dos Santos, morador de Bento Rodrigues

Foto: Wigde Arcangelo

A minha maior indignação é a demora da Fundação Renova em atender ao atingido. Vejo como o maior desrespeito com a gente. No dia 5 de novembro de 2015, aconteceu o rompimento da barragem de Fundão, acabando com todo o nosso trabalho, nosso suor, nossas dificuldades na comunidade. A nossa comunidade era uma comunidade simples, mas uma comunidade organizada. Uma comunidade que tinha lazer, tinha alegria, tinha momento de festa, festa religiosa, festa cultural e, hoje, tá uma comunidade morta, sem vida. Uma comunidade que luta, luta pela recuperação e se encontra com uma empresa poderosa que só nega o direito do atingido. Ela não contempla o atingido como é preciso. A minha maior indignação é ver o meu povo adoecendo, o meu povo depressivo, porque todos estão depressivos na nossa comunidade. Todos com casas trincadas, as que ficaram foram danificadas e trincadas, e a Fundação Renova não repara esse erro. E a demora com nosso novo reassentamento, com nossos projetos, todos prontos, feitos… A Fundação Renova está distorcendo tudo aquilo que é o plano do atingido. Levou para o juiz e, agora, está levando todos os nossos projetos na mão do juiz, sem consultar o atingido, desrespeitando o atingido. A minha maior indignação com a Fundação Renova é a forma dela tratar o atingido com desigualdade, colocando um atingido contra o outro. Ela reconhece um e não reconhece o outro, e toda a comunidade foi atingida no geral. Eu fui uma atingida que saí da minha casa. Trabalhei 43 anos pra construir uma casa, construir o meu lazer… Dentro de 20 minutos, esse crime dessa lama maldita levou toda a minha casa, eu saí de casa com a roupa do corpo, e nunca a Renova chegou em minha porta pra me oferecer um apoio, um acolhimento, uma preocupação com toda a minha vida e da minha família. A minha indignação, no geral, é em relação às casas. É casa trincada, é casa pras pessoas que perderam as suas casas e estão fora do seu território, as pessoas que estão doentes e precisam de tratamento, os pais que precisam de cartão emergencial e eles negam esse cartão pra quem tá com os seus filhos doentes, com todo o diagnóstico nas mãos de que está contaminado pela lama, com metais pesados no corpo, e eles ainda negam o direito do cartão emergencial. A minha maior indignação com a Fundação Renova, com esse crime cometido por eles, pelas empresas, porque eles são o intercâmbio das empresas, é que eles não enxergam o atingido como atingido. Eles enxergam o atingido como explorador, mas eles veem dessa forma porque isso não aconteceu com eles, porque a nossa vida, hoje, se estampa na dor, no sofrimento, na depressão, até mesmo na falta. Porque o que eles oferecem com o cartão, se a gente for colocar tudo na ponta da caneta, ele não dá pra sustentar a casa, principalmente aquelas pessoas que saíram do seu território pra vir pra cidade, né? O custo, pra nós, ficou maior. Não é o custo do nosso território. Lá, a gente tinha ajuda, a gente plantava, a gente colhia, a gente tinha criação de gado, de galinha… Isso é uma renda que a gente tinha e, hoje, não tem. Essa lama nos colocou na dificuldade, nos colocou com mais pobreza, porque a gente era pobre, mas era um pobre que tinha tudo, era um pobre saudável. Então, essa demora da Fundação Renova em atender ao atingido nos deixa muito chateados, tristes, magoados, e tudo isso nos deixa frágil. Deixa a gente sem forma de sair, de desenvolver. 

Quando aconteceu, a justiça deu, pra Fundação Renova e a Samarco, até 2019 para atender aos atingidos. É 2020, o que tem no nosso território, para a construção do nosso reassentamento, é o terreno. O terreno e um projeto que a Fundação Renova está fazendo da forma deles. A gente fica sem saber, sem confiança, sem entender o que passa na cabeça desse povo pra atender a gente, desrespeitando nossas necessidades, nossos projetos e desejos. Quem tem que falar como vão ser nossos projetos somos nós. Nós é quem fomos atingidos, não é ela quem vai responder pelos nossos reassentamentos e nossas casas. 

E também na comunidade tem várias pessoas com cadastro feito, que foram atingidas, são idosos esperando o cartão emergencial e nada. A Renova não reconhece, não busca, não contempla o direito dessas pessoas. É muito revoltante pra nós, atingidos. A Fundação Renova não pode destratar o atingido como ela destrata, negar direito como ela nega, porque a nossa luta é a busca por direito. A gente busca pelo direito e a Fundação Renova luta pra tirar os nossos direitos, e a gente confia agora em Deus, né? Porque a gente vai lutando, lutando, nós não podemos perder a esperança da luta. Mas tem pessoas que estão perdendo as forças, estão se afastando, porque perdem a paciência de esperar. 

Vera Lúcia Aleixo Silva, moradora de Gesteira

Foto: Júlia Militão

Tenho nitidez do caráter unilateral dessas “negociações” e de seu pacto com a preservação dos interesses das grandes empresas envolvidas. O fato de que a própria política de indenização é elaborada e conhecida apenas pela Fundação Renova (contratada pelas autoras do crime) atesta essa premissa.

Na ausência de qualquer diretriz que respalde o entendimento das pessoas, das comunidades, dos povos tradicionais e indígenas, do ecossistema, enfim, de todos os povos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, não há negociação. 

Há exposição de opiniões, posicionamentos, argumentos, migalhas etc… Há também muita polidez em lidar conosco, nos localizam como vítimas, ainda que munidos de todo o aparato para nos silenciar institucionalmente. Trata-se de uma batalha de poder muito desigual. Mas, na minha opinião, um crime é sempre um crime, genocídio é sempre genocídio, e isso não é negociável.

Além disso, nossos alvos de negociações são distintos: para eles, o que está em negociação é em qual perfil a pessoa atingida “se enquadra”, de acordo com seus próprios parâmetros e, consequentemente, qual a quantia que lhe será destinada. A arbitrariedade do processo é intrínseca e totalmente condicionada ao julgamento da própria Fundação. Isto é, se você é considerado atingido ou não, e mais, quão atingido você foi, é colocado pela Fundação Renova.

Para nós, se trata de negociar um futuro possível, negociar nossas vidas, negociar uma versão da história que nos contemple e que explicite que o rompimento da barragem de Fundão foi um crime.

Ramila Cerqueira Mol, moradora de Paracatu de Baixo

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