ATÉ HOJE: vivendo em um estado de dor e de luta

Há cinco anos, os moradores de 41 municípios entre Minas Gerais e Espírito Santo viram suas vidas se transformarem completamente. Nesse tempo que passou, a cada dia, uma nova mudança era percebida. Se, antes, havia a liberdade de desfrutar da natureza de forma respeitosa e benéfica, hoje, as mineradoras, que utilizam a natureza visando ao lucro acima de qualquer coisa, desfrutam da liberdade causada pela impunidade. É doloroso assistir aos sucessivos crimes das mineradoras, ano após ano, mês após mês, dia após dia. É verdade que não é possível mudar o que aconteceu no dia do crime do rompimento da barragem de Fundão, é um trauma coletivo que deixará marcas para sempre. A questão é que os danos deveriam ser minimizados por aqueles que os causaram e isso não tem sido feito. Na realidade, criam-se ainda mais danos, antes impensáveis pelas populações atingidas. 

Nesta edição, o Jornal A SIRENE escutou atingidos(as) de várias regiões, por meio de aplicativos de comunicação, como o WhatsApp, devido à impossibilidade dos encontros presenciais causada pela pandemia do novo coronavírus. Nessas conversas, perguntamos aos(às) atingidos(as) como tem sido o passar desses cinco anos. Assim, chegamos a relatos muito diferentes, de acordo com as subjetividades e os afetos de cada um. No entanto, mesmo diferentes, o que se percebe, em cada um, é a falta de perspectiva. 

Ressaltamos que a falta de perspectiva não quer dizer falta de força. Para todos(as) os(as) que convivem com a luta diária das comunidades atingidas, é visível a força que essas pessoas têm para conquistar seus direitos e mesmo para lutar no lugar de quem já está exausto(a). Mas não é fácil, sabemos, lutar todos os dias para ter o mínimo de respeito e dignidade. Ainda assim, a luta vale a pena e é por meio dela que podemos vislumbrar uma transformação social na qual a Samarco, Vale, BHP Billiton e Renova pagarão pelos seus crimes. 

Por Andréia Mendes Anunciação, Léia Marques e Marino D’Angelo Jr.

Com o apoio de Joice Valverde, Júlia Militão, Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo

Foto: Juliana Carvalho

Eu, como atingida, tenho certeza que o maior incômodo não é só meu, mas também de boa parte da comunidade: o medo, a incerteza e o sentimento de tristeza, principalmente quando o 5 de novembro está se aproximando. Não que, nos outros dias, não vivamos tudo isso, mas é que, quando se aproxima o 5 de novembro, todas aquelas lembranças ficam ainda mais fortes e nos tornam mais deprimidos.

Léia Marques, moradora de Bento Rodrigues

Depois de um tempo para cá, algumas pessoas ficaram desanimadas por ser muita luta e pouca vitória. Esses cinco anos não foram fáceis, não. É uma luta constante com a Renova, o que acaba mexendo com o psicológico da gente. Tanto que você perde a paciência, fica esgotado, cansado, desanimado… 

Muitos perderam seus familiares, perderam o contato com a família, muitos tiveram que ir para mais longe de suas casas, perdendo as amizades, porque, como a Renova trabalhava no território colocando um atingido contra o outro, então, se perderam muitos amigos.

Acho que, hoje, estamos aí, como a grande maioria, cansada, desanimada, com o psicológico abalado. Como atingida, a gente tem uma sensação de muita injustiça. Essa sensação acaba corroendo a gente com o tempo. Mas, nesses cinco anos, a gente aprendeu muita coisa sobre direitos, sobre leis, coisas que a gente vai carregar na bagagem pro resto das nossas vidas.

O que mantém todo mundo de pé é a esperança, acreditar que a justiça será feita. Ela pode até tardar, mas ela não vai falhar. Se a justiça dos homens falhar, a de Deus não falha, não.  

Andréia Mendes Anunciação, moradora de Volta da Capela

Eu vim pra essa região em 1989, aqui me tornei produtor de leite, fiquei conhecendo a minha esposa, me casei na região. Vivíamos em harmonia com todos. A gente sempre procurou fazer o bem, sempre procurou ajudar e, pra muitas pessoas da nossa região, a gente era considerado até um ponto de referência quando a situação ficava um pouco difícil. Criamos uma associação de produtores de leite na qual eu fui presidente por três mandatos e, através dessa associação, desenvolvemos a principal atividade econômica da região, que é a pecuária de leite, da qual muitas famílias tiram o sustento, colocam o pão na mesa. Juntos, nós conquistamos três tanques de expansão, com capacidade pra três mil litros de leite/dia e chegamos a produzir 10 mil litros de leite por dia. Com o rompimento, 50% dos produtores que faziam parte da associação tiveram sua capacidade de produção e suas terras destruídas pela lama. Isso tornou a associação inviável para produzir. A gente tá aqui tentando reerguer a associação, mas a duras penas. Nossa renda foi acabando. Isso causou um empobrecimento muito forçado e muito grande na região e pra mim. 

Fui tirado da minha casa, tive dois terrenos atingidos por lama, dois estão em isolamento comunitário. Hoje a gente não tem mais os companheiros, os amigos. Vivemos em um isolamento total, não conseguimos ninguém pra ajudar a gente no trabalho. E o pior de tudo é que vivemos uma vida imposta. Pra ser sincero, eu sinto que os atingidos, hoje, estão no centro de um grande negócio. Gasta-se muito mais pra manter os atingidos dentro do processo do que pra resolver a vida das pessoas. Eu adquiri várias doenças. Diabetes, pressão alta, depressão. Tenho que tomar remédio pra dormir. E essa falta de perspectiva de quando eu vou ter minha vida de volta, de quando eu vou ter a rédea da minha vida de volta, é que adoece, é que desanima, é que faz a gente ficar cada vez pior. 

A maioria dos atingidos nunca dependeu de mineração. Eu nunca dependi de mineração e, hoje, vivo aqui praticamente condenado a uma vida imposta pela instituição que causou o crime na minha vida. E o pior: com o aval da justiça. Tem momento, nesse processo, em que eu acho que os criminosos são os atingidos por estarem no percurso da lama, porque eu estou condenado a viver num lugar que não é meu, a não organizar os meus planos  e não realizar os meus projetos, porque não tem como e não sei quando isso vai terminar. Estou condenado por tempo indeterminado. Então é humilhante, sofrido, porque além de ser atingido, é você perder sua história, perder seus companheiros, perder uma comunidade, perder aquilo tudo que você vinha construindo como ser humano dentro de uma sociedade e ser condenado a viver uma vida imposta, sem saber quando você vai ter a sua vida de volta. 

Não é brincadeira participar desse processo e conseguir perceber a crueldade que essas pessoas praticam com os atingidos. Em nome dos atingidos, muita gente tá ficando rica, empresas, empreiteiras, obras superfaturadas e, para os atingidos, nada. Pra me manter nesse processo, se gastam milhões; pra resolver a minha vida, não se gasta um centavo. Cadê a justiça? Cadê os representantes do povo? Cadê o ser humano que tem amor? Porque esse povo vem aqui e leva toda nossa riqueza embora e só deixa destruição e tristeza pra nós. Até quando nós vamos continuar sendo vistos como os criminosos dentro desse processo? Eu, enquanto não receber uma indenização que seja do meu agrado, não pretendo sair. Porque eu lutei muito pra resgatar as minhas coisas, eu sou osso duro de roer. Pode levar 10 anos, 20 anos, 50 anos, enquanto eu viver, eu tô aqui lutando pelo meu direito. O tempo não é mais problema pra mim. 

Marino D’Angelo Jr., morador de Paracatu de Cima

Marino e sua esposa, Maria do Carmo D’Angelo | Foto: Joice Valverde

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