Ofício marcado no corpo: a vida de uma pescadora atingida

Eliane Balke vive do mar e do mangue. Ela é pescadora e catadora de caranguejo por tradição, aprendeu a profissão com a família. A pescadora, que definia sua rotina de trabalho como um “mar de rosas”, viu essa realidade mudar quando a lama de rejeito de minério da Samarco/Vale/BHP Billiton chegou ao Espírito Santo. A fartura do pescado, o que ela mais gostava no seu trabalho, não existe mais. O meio ambiente também sofre com o rompimento da barragem da Samarco/Vale/BHP Billiton. Eliane, além de pescadora e catadora de caranguejo, tornou-se atingida. Há mais de quatro anos, vem descobrindo o que isso significa. Mas algo que ela logo aprendeu é que ser mulher e atingida é carregar um peso a mais que seus companheiros de luta.

Por Eliane Balke

Com o apoio de Sérgio Papagaio e  Wigde Arcangelo

Foto: Isis Medeiros

Sou pescadora por ofício. Sempre transformei as dificuldades em trabalho árduo. No mangue, retirava o necessário para o sustento de casa. Ser pescadora é um desafio de vida, eu dependia exclusivamente da pesca. Assim como os muitos capixabas, também fui prejudicada pela chegada da lama de rejeitos da Samarco/ Vale/BHP Billiton no litoral do Espírito Santo.

O desastre não retirou apenas as condições de trabalho, mas atingiu todo um modo de vida, porque ser uma pescadora é saber do mundo de um determinado jeito. É ser meteorologista formada pela experiência, ser conhecedora das características próprias de cada espécie de peixe, da utilidade de cada ferramenta pesqueira, saber o significado de cada toada de vento. São saberes que se mesclam no cheiro do rio e do mangue, nas cores refletidas pelas águas, em cada hora do dia e na beleza dos estuários do mangue, do rio percorrido no ir e vir do trabalho.

Pescadora tem o ofício marcado no corpo, pele preta na maioria das vezes com a lama do mangue, que se doura com o sol de todos os dias, por longos anos.

Mãos calejadas, hábeis da pesca, cortadas pelas puãs dos caranguejos, do siri, pelas lâminas que fisgam o peixe. O pescado não é apenas a geração de renda, mas é a base diária da alimentação. Só sei pescar, é o que sempre fiz, o desastre ganhou pernas de lama em cada curso d’água conectado ao Doce. A água une a gente. Isto é, a mesma energia conecta tradições e costumes ao longo da nossa ancestralidade de ocupação territorial da bacia do rio Doce.

A natureza mudou

Hoje, há a permanência de rejeitos no rio Doce. Em ampla faixa costeira, aqui do Espírito Santo, comer o peixe todos os dias significa incertezas, risco e medo. Os rejeitos da mineradora Samarco encontraram rotas de destruição pelo emaranhado de cursos de água que irrigam a planície costeira do Espírito Santo. A lama de rejeitos de minério da Samarco chegou pelo rio Doce e foi despejada no mar, que, sensatamente, recusou o que não lhe pertencia. E a devolutiva de parte desses rejeitos tem provocado sérios desequilíbrios no ecossistema aqui na região, atingiu desde o manguezal litorâneo até as bocas de outros rios existentes ao longo da costa capixaba.

Todo nosso ecossistema foi danificado, nossa natureza está contaminada. A quantidade e a variedade de peixes diminuíram significativamente após a chegada dos rejeitos de minério. Hoje, a captura de espécies com anomalias ou até mesmo sem vida tornou-se comum. O sabor do pescado não é mais o mesmo. A água passou a cheirar mal. O manguezal passou a morrer; dele, restam apenas árvores secas e uma coloração de rosa, incomum, tom marrom ferrugem. Pouco pescado, pouco caranguejo, siri, mariscos. A Samarco nos prejudicou.

Mulher e atingida

A empresa não resolve nada, só nos coloca na posição de mendigar um cartão emergencial. E é diferente ser mulher atingida, não há mecanismos voltados especificamente para a escuta de atingidas mulheres. Assim como não existe também uma política protetiva aos direitos dos vulnerabilizados dentro da estrutura patriarcal em que a gente vive. Não colocam a mulher como responsável financeira. Eu me sinto fragilizada nesse processo de reparação.

A discriminação de gênero apresentou-se, inclusive, nos primeiros cadastramentos realizados com as pescadoras aqui no Estado do Espírito Santo. As pescadoras eram identificadas como lavadeiras, foi o meu caso, veio no meu formulário. Mulheres que eram proprietárias de embarcações foram classificadas como tripulantes, o que, de acordo com a matriz de danos da Renova, acarretava redução significativa dos valores indenizatórios. Ainda há uma luta pelo reconhecimento de mulheres pesqueiras que limpavam, cortavam, congelavam e vendiam o pescado.

É muito triste, como mulher atingida, ver o modelo de mitigação e indenização proposto para as atingidas do rio Doce não seguir diretrizes de amparo à mulher, como acontece, por exemplo, nos programas do Governo Federal, como o Bolsa Família, no qual as mulheres são titulares preferenciais aos benefícios.

Com o processo de se tornar uma atingida, vamos aprendendo um novo vocabulário. Palavras antes inexpressivas ganham, com o rompimento, sentido na luta e para a luta. Entre os novos dizeres, um termo motiva a esperança no futuro, que é a reparação integral. Faz-se necessária a restituição do meu modo de vida, atingida pelo desastre, bem como a adoção das medidas compensatórias para os estragos irreparáveis.

O desastre não implicou apenas na perda da renda, mas também na falta do espaço de convivência, lazer e sociabilidade. Foi deixado um vazio pela perda de relação com o rio, o descanso que o banho de mar provoca, a sensação de conquista do peixe fisgado da água e servido à mesa.

Sobram as dúvidas

A ausência de informação sobre a extensão da contaminação e quais políticas devem ser adotadas, em relação aos meus hábitos diários, reflete diretamente no quadro de saúde que vivo. Estou em contato com o ambiente atingido. Há contaminação do pescado, consequentemente, crise da nossa segurança alimentar. O mais grave: não possuo outra opção de subsistência alternativa à pesca.

Enquanto isso, faltam informações básicas: posso pescar? Posso comer o peixe? Posso nadar na água? Posso filtrar e consumir a água da torneira? A ausência de uma política competente de comunicação e diálogo implica não só na minha desinformação em relação ao processo de reparação.

A contaminação no manguezal vem provocando doenças e matando os peixes, os caranguejos, os animais silvestres. Toda a cadeia produtiva organizada em torno da pesca foi inviabilizada, da captura ao beneficiamento. A comercialização foi atingida intensamente e prejudicou minhas principais atividades econômicas e de subsistência, que são a pesca, a cata do caranguejo e de outros mariscos.

Eliane Balke,  moradora de Barra Nova Sul, São Mateus, Espírito Santo