Entre tradições e violências: o garimpo tradicional do rio Doce e o garimpo de fronteira da Amazônia

Por Emmanuel Duarte Almada – Biólogo e doutor em Ambiente e Sociedade, Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais e Sérgio Papagaio

Foto: Emmanuel Duarte Almada

Quando se ouve falar em garimpo de ouro, logo vem à mente as imagens de Serra Pelada, as invasões de terras indígenas e de unidades de conservação, especialmente na região amazônica. No entanto, o garimpo tradicional no Alto Rio Doce possui uma outra história, baseada em formas próprias de relações sociais e com o território. Enquanto o garimpo de fronteira da Amazônia teve início nos anos 1960 e 1970 do século XX, o garimpo tradicional do Alto Rio Doce tem suas raízes no final do século XVII, com o início do Ciclo do Ouro.

Os garimpeiros e as garimpeiras tradicionais do rio Doce são descendentes dos negros e dos indígenas escravizados que trabalharam nas minas a serviço do Estado, das empresas e também da Igreja. Foram esses mesmos homens e essas mulheres que formaram as comunidades ao longo dos rios e córregos da região, construindo diversos saberes sobre a pesca, as matas e as roças. O garimpo, a agricultura familiar e a pesca compõem os modos de vida que produzem o território tradicional habitado pelas comunidades do Alto Rio Doce. 

Foto: Emmanuel Duarte Almada

O garimpo de fronteira da Amazônia é, em grande medida, marcado pela violência, tanto entre os próprios garimpeiros, quanto em relação aos povos indígenas e às comunidades locais dos territórios por onde ele se expande. Por trás do garimpeiro de fronteira da Amazônia, frequentemente, há extensas redes de grandes empresários que exploram esses trabalhadores, uma vez que, para alcançar locais tão isolados, é preciso elevado aporte de capital e uma infraestrutura quase bélica. 

O garimpo tradicional do Alto Rio Doce, por outro lado, constitui o modo de vida das comunidades da região. Embora também seja herdeiro de uma história violenta de escravidão e dor, a exploração do ouro pelo garimpo tradicional conforma uma extensa rede de relações e saberes entre humanos, águas, solos, rochas, matas, peixes e o próprio ouro. Seja o garimpo de banca, canal, baixão ou balsa, todas essas formas estão voltadas para a subsistência e compunham, antes do crime da Samarco/Vale/BHP, uma parcela importante da economia local. 

Nas décadas de 1970 e 1980, o garimpo de fronteira da Amazônia, de alguma maneira, se interliga temporariamente ao garimpo tradicional do rio Doce. Foi da região amazônica que chegaram garimpeiros que trouxeram os saberes e as técnicas envolvidos no garimpo de balsa e baixão. O uso de motores, no entanto, não significou uma redução da mão de obra para extração de ouro. Ao permitir a sucção e a lavagem de um volume de material muito maior que as técnicas então existentes (banca e canal), o uso de motores teve como consequência um emprego ainda maior de esforço físico por parte dos garimpeiros. Essas novas tecnologias, trazidas pelas fofocas, há 40 anos, passaram a compor o modo de vida garimpeiro, que não deixou de ser tradicional. As relações de amizade, solidariedade e partilha continuaram a ser um dos elementos principais do garimpo tradicional.

Foto: Emmanuel Duarte Almada

Outro aspecto muito importante que diferencia o garimpo tradicional do Alto Rio Doce daquele praticado nas fronteiras amazônicas refere-se a uma dimensão arqueológica da prática. Os garimpeiros do rio Doce, muitas vezes, trabalham em áreas anteriormente garimpadas, há décadas ou centenas de anos. Eles reconhecem vários sinais nos rios, córregos e especialmente nos solos, que são indicativos de garimpos do passado, tais como a forma de disposição dos cascalhos, tipos de vegetação, ferramentas e objetos antigos encontrados (cachimbos, bateias de madeira, carumbés). Os garimpeiros tradicionais guardam, em sua memória, as mudanças nos caminhos dos rios, dão nome e sentido a cada rebojo, pedra, ilha e barra. A maior parte dos garimpos na Amazônia, ao contrário, se constitui a partir de uma expansão sem volta, que deixa apenas rastros de destruição e violência.