A lama invisível do adoecimento

Em fevereiro deste ano, a Vale surpreendeu os(as) moradores(as) de Antônio Pereira com a notícia de que teriam de ser removidos(as) de suas casas. Com a justificativa de que iniciaria um processo de descomissionamento da barragem do Doutor, localizada nas proximidades, a mineradora determinou que os(as) moradores(as) deveriam sair de suas moradias e ir para casas alugadas, hotéis ou pousadas. A comunidade, conhecendo o rastro de crimes que a Vale deixou em Minas Gerais, tem exigido a garantia de seus direitos antes de qualquer mudança. Atualmente, mesmo em meio à crise de saúde pública causada pela Covid-19, a empresa insiste em realizar mudanças coletivas, assediando aqueles(as) que se recusam a sair de suas casas em um momento como esse e sem garantia de reparação. Tanto os(As) moradores(as) da Zona de Autossalvamento (ZAS), quanto das áreas consideradas seguras, relatam um clima de insegurança, de medo e de danos à sua saúde mental.

Por Ana Carla de Carvalho Cota, Charles Romazâmu Murta, Elizabeth Cristina da Costa, Geraldo Pereira de Souza, Maria Helena Ferreira e Patrícia Ferreira Ramos

Com o apoio de Juliana Carvalho

A ZAS representa as localidades que podem ser atingidas caso a barragem do Doutor venha a romper.

A situação da barragem do Doutor tem roubado nossa paz, além de trazer inúmeros transtornos, inclusive em relação à saúde mental dos moradores. Os moradores sofreram diversas violências por parte dos funcionários da Vale. Vivenciamos momentos turbulentos, inclusive com boletim de ocorrência policial. O que mais nos incomoda é a postura de imposição dos funcionários da Vale, aliada à falta de informações e à falta de diálogo com os moradores. A luta não está fácil. A Vale aproveita a situação da pandemia e faz o que quer.

Maria Helena Ferreira, moradora de Antônio Pereira

A Vale elevou o nível para dois, no dia 1º de abril. No dia 2 de abril, já tinham dois funcionários da Vale aqui dentro, na porta da minha casa, oferecendo para os meus pais irem olhar casa para alugar. O nosso questionamento é por que, inicialmente, a empresa colocava que essa saída seria definitiva. Hoje, ninguém sabe se essa saída é definitiva ou se ela é temporária. Então todo mundo fala que isso faz parte da estratégia da empresa para desestabilizar a comunidade. 

Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira

A minha preocupação hoje é com essa violência, essa forma abusiva e impositiva da Vale, ferindo os direitos humanos básicos, fundamentais de todo ser humano, com destrato mesmo, entrando dentro da casa das pessoas. Mais do que isso, essas pessoas [moradores(as)] querem falar, sabe? Quando eu paro pra conversar com eles, cada dia é uma história diferente. Isso precisava ter uma memória e a Vale, em momento algum, se preocupou ou deu o direito para as pessoas construírem algumas das suas reparações. Então, foi tudo muito imposto. A comunidade não construiu nada junto com a Vale. 

Ana Carla de Carvalho Cota, moradora de Antônio Pereira

Tem insegurança, tem tristeza. Os vizinhos aqui eram vizinhos há 30, 40 anos. O último que saiu aqui, saiu chorando. Ele tinha a horta dele, ele ficou até o último minuto. Ele relutou para mudar, só que não teve jeito. A minha casa mesmo, foi por um triz que nós não mudamos. Então o clima é horrível, clima de insegurança, clima de vazio, clima de que não tem pessoas aqui mais.

Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira

O que mais me incomoda, como moradora, é a falta de respeito com que a Vale trata os moradores. Devemos lembrar que, quando a Vale chegou em Antônio Pereira, a comunidade já existia. É bom lembrar que a Vale quebrou nosso isolamento social, muitos moradores removidos fazem parte do grupo de risco. O vazio deixado pela remoção dos moradores, a Vale nunca irá conseguir reparar. Infelizmente, a Vale nos trata apenas como números, se esquece que somos seres humanos, dotados de sentimentos e emoções. 

Maria Helena Ferreira, moradora de Antônio Pereira

Os(As) moradores(as) ouvidos relataram extremo desconforto com o dia 30 de abril, no qual diversos funcionários da Vale e operadores de caminhões de mudança ocuparam a rua Água Marinha. Os(As) moradores(as) contam que houve assédio e pressão por parte da empresa para que se retirassem rapidamente de suas casas.

Na época medieval, o pessoal fazia um cerco na cidade e tirava o suprimento. Aqui, o que eles fizeram? Cercaram a comunidade e distribuíram informações descentradas. “Vocês têm até o dia 30 de abril pra sair.” Primeiro, eles falaram assim: “a barragem está em risco e vocês têm que sair”. Alguns moradores já tinham um conhecimento maior, sabiam que a barragem não estava pior do que ela esteve no ano passado, porque, hoje, ela não recebe rejeito mais. 

Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira

Isso aqui parecia uma guerra, sabe? A gente tava muito apreensivo, porque a Vale colocou o terror psicológico em todo mundo. Usando desse nível dois como um possível rompimento mais iminente. 

E aí esse dia 30 é um dia emblemático, porque tava todo mundo sob uma tensão tão grande. A Vale, inclusive, chegou a fazer alusão de que teria um mandado judicial para tirar todo mundo.

Ana Carla de Carvalho Cota, moradora de Antônio Pereira

Não necessariamente precisa haver mudança física na estrutura, indicando uma patologia estrutural que pode levar a um rompimento, para se elevar o nível. Basta que existam índices, por exemplo, coletados durante o monitoramento que não atinjam os fatores de segurança preconizados pela prática mundial. 

O auditor chegou à conclusão de que, mesmo com as intervenções que vinham sendo tomadas, a barragem não conseguiu atingir o fator de segurança mínimo necessário. Ainda está ineficiente a tentativa de elevar o fator de segurança simplesmente pela drenagem da barragem. Esse foi um dos motivos que levaram o auditor a sugerir a elevação para o nível dois.

A Defesa Civil não tem estrutura física, equipamentos e mão de obra qualificada para elaborar técnicas de monitoramento, a fim de dizer se uma barragem está em risco, ou não, e tomar ações. Isso não é função da Defesa Civil. Isso é função do empreendedor [Vale] e da Agência Nacional de Mineração (ANM), que é o órgão fiscalizador máximo dessas barragens no Brasil. A partir do momento em que o auditor externo, independente ou não, ou a ANM, ou a própria empresa, nos apresenta esses resultados, aí nós vamos agir, garantindo a segurança da população em cima do que nos foi falado. 

Charles Romazâmu Murta, geólogo da Defesa Civil Municipal de Ouro Preto

Apesar de a ZAS ser a área de maior risco, há um clima de tensão em toda a comunidade de Antônio Pereira, visto que a mineradora não tem sido clara em suas informações. Segundo moradores(as), essas informações são repassadas por grupos de WhatsApp, o que gera, por um lado, pânico e, por outro, desconfiança do real perigo que a barragem do Doutor possa apresentar.

Eu lembro bem de um dia, dando aula na parte da manhã, uma sirene tocou sem aviso prévio. Estava num período de bastante medo, a fala sobre a barragem era bastante recorrente e soou uma sirene em horário de aula. A gente não tinha tido notificação nenhuma de que haveria um teste e nós ficamos todos apreensivos. Os alunos ficaram com muito medo e chorando.

A escola é considerada um ponto de encontro, mas não tem estrutura, nem pessoal, para lidar com uma situação de crise, como um rompimento. O nosso cotidiano é encontrar alunos que relatam que a família faz vigília de madrugada para o caso de uma barragem se romper; ou que talvez vão se mudar pra outro lugar, porque veio, segundo eles, uma pessoa da Vale falando que tem que sair da casa. Existe um grau de adoecimento muito grande da comunidade como um todo. Não só dos moradores que estão na ZAS, porque a desinformação é tamanha que eles também nem sabem.

Patrícia Ferreira Ramos, professora na Escola Estadual Daura de Carvalho Neto, em Antônio Pereira

O risco que nós passamos, há dois anos, com a Vale operando essa barragem, jogando rejeito nela e a Vale brigando na justiça pra falar que a barragem era segura… Hoje, nós estamos sendo removidos, a empresa quer remover a gente alegando que o risco é da barragem sem dar nenhuma garantia para os moradores, então, a gente não acha justo isso. 

Geraldo Pereira de Souza, morador de Antônio Pereira

Para quem saiu de suas casas, deixou para trás anos de história, suor e trabalho, indo viver de incertezas, visto que são tratados com desdém e omissão. Para quem ficou e não faz parte da ZAS, como é o meu caso e de muitos moradores aqui, restou a incerteza, a angústia e o medo do que possa acontecer no amanhã. 

Com o isolamento social devido à pandemia, não recebemos notícias de como está a estabilidade da barragem e, tampouco, sobre os direitos que nós, atingidos de forma direta e indireta pela barragem do Doutor, temos. Vivemos como reféns de uma mineração selvagem cujo lucro supera a vida. 

Elizabeth Cristina da Costa, moradora de Antônio Pereira

Esse período escancarou ainda mais o que é a Vale e a mineração predatória que ela promove. Nós continuamos defendendo um outro modelo de mineração que seja organizado pelos trabalhadores. Que seja organizado pela comunidade para que os recursos sejam voltados para o bem-estar, para a garantia de vida das pessoas, com informação, com direito à memória do lugar. Direitos sem riscos à saúde, sem riscos à vida. Que a gente também pense que um novo modelo de mineração é possível. 

Patrícia Ferreira Ramos, professora na Escola Estadual Daura de Carvalho Neto, em Antônio Pereira