O terror das sirenes e as consequências da lama invisível

Após 13 dias do crime da Vale em Brumadinho, uma sirene ecoou em meio à madrugada de Barão de Cocais, município localizado há cerca de 50 quilômetros de Mariana. Em média, 500 pessoas das comunidades de Socorro, Tabuleiro, Piteira e Vila do Gongo Soco tiveram de abandonar suas casas naquela noite. A maioria, até hoje, segue sem perspectiva de voltar e tem tentado negociar indenizações e reparações com as mineradoras. Para quem acompanha a luta dos(as) atingidos(as) pelas barragens, sabe que essas negociações não são fáceis e nem justas. O caminho é árduo. Já se passaram dois anos e os(as) moradores(as) ainda não voltaram para suas casas. A última previsão da Vale para a conclusão do descomissionamento da barragem de Sul Superior da Mina Gongo Soco está estimada para 2029.

Por Elida Geralda Couto, Nicolson Pedro de Resende e Roseni Aparecida Ambrosio 

Com o apoio de Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo

Mapa da mancha da barragem de Barão de Cocais, abril de 2019.
Foto: Larissa Pinto

Por volta de uma hora da madrugada, acordei com a sirene. Ouvi uma sirene e achei que era ambulância, ouvi novamente, achei que era polícia, aí, na terceira sirene, eu acordei. Abri a porta da casa e realmente ouvi a mensagem. De imediato, eu peguei o celular e subi o morro correndo. Lá, quando eu cheguei no morro, eu liguei pra polícia, sargento Silva atendeu. E ele disse: “olha, a gente não tá sabendo de nada”. 

Foi assim, bem preocupante, porque tinha 13 dias que tinha acontecido Brumadinho, então a imagem que veio na nossa cabeça era que ia acontecer a mesma coisa com a gente, entendeu? Eu levei comigo apenas um cachorro, mas eu tinha outros sete cachorros. Eu lembro que a evacuação foi na sexta e, no sábado, eu tentei ir lá, aí a polícia já não me deixou ir. E eu fiquei negociando com a Vale. Eu falei assim: “ó, eu vou alugar uma casa, né? Cês me dão os móveis, que eu preciso dos meus cachorros”. A Vale não me deu os móveis, eu aluguei uma casa, recebi meus cachorros um mês depois. Eu paguei o aluguel pra ficar com meus cachorros, eu não podia dormir lá, porque eu não tinha móveis. E foi enrolando. Nós formamos uma comissão pra negociar com a Vale. Então, nós começamos a negociar com a Vale nas reuniões semanais. A gente teve que brigar por roupa, comida, aluguel, alimentação pros animais, roupa para criança, escola para criança. A Vale não deu nada, tudo foi brigado, até pela renda mínima nós brigamos. 

A primeira expectativa era de voltarmos em três anos. Depois, passou pra cinco, aí, na penúltima reunião, a Vale falou que vai voltar em 2029. 

Nicolson Pedro de Resende, morador da Vila do Gongo Soco, Barão de Cocais

Quando a sirene tocou, eu estava dormindo com minha família. Minha irmã que chegou batendo na janela correndo, desesperada, pra gente poder acordar. No primeiro instante, eu não acreditei. A gente participava de reuniões e a Vale sempre falava que a barragem estava estável, que a gente nunca ia ouvir a sirene tocar, que a colocação das sirenes era só mesmo pra seguir os protocolos. Não tínhamos treinamento, porque estava num processo de demarcar os pontos de encontro para poder passar pra comunidade. 

Após o toque da sirene, nós fomos retiradas, fomos para Barão de Cocais, que é a cidade mais próxima, ficamos no ginásio poliesportivo. E, de lá, as famílias foram direcionadas para hotéis ou casas de parentes. Os hotéis da região não comportavam a quantidade de pessoas. A gente ficou, praticamente, três meses entre hotel e casa de familiares até conseguir a moradia temporária, que são essas casas alugadas pela Vale. Hoje, a gente fala que vive sob o medo de uma lama invisível. Várias pessoas adoeceram, já tivemos cinco mortes na comunidade. 

O tratamento da mineradora com as nossas comunidades é uma tremenda falta de respeito. São várias pessoas que saíram de casa com a esperança de voltar, mas é sempre a mesma enrolação, não temos resposta de nada. A gente vê que, infelizmente, ela utilizou Brumadinho pra poder conseguir retirar a gente de casa. 

Elida Geralda Couto, moradora da comunidade de Socorro, Barão de Cocais

Foto: Wigde Arcangelo

Protestos

No dia 8 de fevereiro deste ano, moradores(as) das comunidades atingidas se manifestaram contra a Vale. O ato marcou os dois anos longe de suas casas. Os(As) atingidos(as) ainda reivindicaram o direito à renda mínima e à informação.  

Nós fizemos o protesto, porque, além de cortar a renda mínima, ela tá oferecendo 30, 40% a menos. E, como o desembargador cancelou a prorrogação da renda mínima, a Vale tá se aproveitando disso, que muitas famílias se desesperaram, sem dinheiro. Então tem gente que está aceitando agora propostas bem menores do que foram feitas no início das negociações.

Bem, o protesto foi, primeiro, pra marcar os dois anos de evacuação e pra chamar atenção da justiça, do desembargador, porque ele suspendeu a prorrogação da renda mínima que a Vale chama de renda emergencial. A última renda mínima que os evacuados receberam foi em novembro. Aí nós fizemos um levantamento de todas as demandas anteriores que a gente tava tentando negociar com a Vale e colocamos tudo numa lista de reivindicações. 

Nicolson Pedro de Resende, morador da Vila do Gongo Soco, Barão de Cocais

A Vale vem falando que nós não estamos numa situação de emergência  mais e, por esse motivo, ela cortou essa renda mínima, que a Vale chama de emergencial. Nós temos várias famílias desempregadas, várias pessoas passando necessidade, justamente por causa disso. Como nós vivíamos no meio rural, as pessoas trabalhavam com as coisas do meio rural, capinando, roçando, plantando e cuidando de animais. Aqui na cidade, infelizmente, essas pessoas não conseguem exercer o que sempre fizeram. A maioria das pessoas não tem grau de instrução para conseguir entrar numa empresa. A Vale não absorve a mão de obra local, porque as pessoas não têm estudo e, agora, ela retira uma forma de renda das pessoas. 

Após o protesto, nós ligamos para o gerente da Vale. Conseguimos a reunião, essa reunião foi no dia 19 de fevereiro de 2021. Saímos de lá sem resposta nenhuma, a única resposta que a gente teve foi que a construção do muro de contenção começou em 2019 e finalizou em 2020. Vão começar o descomissionamento, assim que o muro tiver a liberação, que acontece até o dia 15 de março. Então, em abril, provavelmente, começa o descomissionamento e vai até novembro de 2029.

Elida Geralda Couto, moradora da comunidade de Socorro, Barão de Cocais

Santa Bárbara

Desde 2019, a sirene soou quatro vezes na região de Santa Bárbara. A mineradora AngloGold Ashanti,  proprietária da barragem Córrego do Sítio, afirma que não há nenhum risco de rompimento. A comunidade de Barra Feliz, entretanto, desconfia de tal afirmação, visto que as barragens de rejeitos sempre trazem riscos aos que residem na Zona de Autossalvamento (ZAS), como é o caso da comunidade. Além de tudo, os(as) moradores(as) têm convivido com o pânico causado pelas sirenes disparadas acidentalmente, o que demonstra total falta de capacidade da empresa em lidar com situações de emergência. 

No dia em que acionou foi um pânico total, foi um terror, porque tava chovendo muito. A sirene tocava sem parar, alto, pedindo pra sair, porque era uma situação real de emergência, que era pra gente evacuar nossas casas. Os pontos de encontro estão todos sem condições de uso, cheios de mato, abandonados. Nos dias seguintes, a gente ficou apreensivo, porque, no dia 8 de janeiro [de 2021], foram dois toques, um de manhã e um à noite. E a produção da empresa continuou a mesma, né? Com a gente aqui debaixo, sem saber o que estava acontecendo quando houve os disparos acidentais.

Ainda não houve remoção de nenhum morador. Tem gente que quer sair, são pessoas idosas, pessoas que não têm condições de correr se acontecer algum tipo de sinistro. A empresa não tem responsabilidade social, o plano de contingência da empresa não funciona, já provou pra gente mais de duas vezes que não funciona, nós estamos reféns de toda situação.

Desde quando teve aquele rompimento em Mariana, a gente tá tentando sair, porque a gente não se sente seguro estando debaixo da barragem, a gente se sente abandonado, a gente se sente como se fosse um objeto para a empresa. O 0800 que eles deram pra gente ligar caso acontecesse algum tipo de sinistro não funciona, tem baterias de sirenes que foram furtadas e não tinham sido repostas até esse momento. A empresa, em nenhum momento, fala com a gente se vai ter a possibilidade de nos retirar daqui. 

É muito ruim ver as pessoas desesperadas daquela forma pra tentar sair das suas casas. E se fosse uma situação real de risco, né? Ia morrer muita gente. A empresa não nos tira de lá, mas também fica colocando terror em cima da gente, como se eles fossem donos de tudo que tá ali, das nossas vidas e do nosso bem-estar.

Roseni Aparecida Ambrosio, moradora de Barra Feliz, Santa Bárbara