Validade dos estudos sobre saúde em disputa na Justiça

O Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU), a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE/MG) e a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPE/ES) recorreram da decisão do juiz da 12ª Vara Federal que determinou a implementação e a execução da “Gestão Integrada para Saúde e Meio Ambiente (Gaisma)”, metodologia proposta pela Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton para avaliar os danos à saúde e ao meio ambiente. Os órgãos também recorreram da decisão do juiz de anular os estudos já feitos sobre o risco à saúde dos(as) atingidos(as). A Desembargadora Federal Daniele Maranhão aceitou o recurso parcialmente.

Por Carmen Fróes e Sérgio Papagaio

Com o apoio de Júlia Militão, Juliana Carvalho e Wigde Arcangelo

Desde o crime da Samarco/Vale/BHP Billiton, os(as) atingidos(as) lutaram por uma avaliação do risco à saúde decorrente do rompimento da barragem. Estudos independentes foram realizados ao longo dos anos, até que, em 2018, a Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton e a Câmara Técnica de Saúde (CT-Saúde), órgão que compõe o Comitê Interfederativo (CIF), entraram em acordo na contratação da empresa AMBIOS para realizar o Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH), a partir das diretrizes do Ministério da Saúde.

Os(As) atingidos(as) se viram no meio de mais uma luta para receber os resultados, enquanto a Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton adiava as conclusões do estudo. Apenas em novembro de 2019, a AMBIOS conseguiu realizar a devolutiva da pesquisa. Segundo a empresa, o ar e o solo dos territórios atingidos, em Barra Longa e em Mariana, estão contaminados por resíduos tóxicos. Não contente com a conclusão, a Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton propôs, em dezembro de 2019, uma outra metodologia de análise: a Gestão Integrada para a Saúde e Meio Ambiente (GAISMA). Diferentemente do trabalho da AMBIOS, a GAISMA não adota os padrões recomendados pelas diretrizes do Ministério da Saúde. O próprio Ministério, em parecer técnico, indica a GAISMA como inadequada para estudos de avaliação de riscos à saúde humana.  

Em janeiro deste ano, o juiz Mário de Paula Franco Júnior, da 12ª Vara Federal, determinou a implementação e a execução do novo modelo de estudo. Já em março, o juiz invalidou todos os estudos já realizados sobre os riscos à saúde, incluindo o da AMBIOS. Como justificativa, ele alegou que os estudos são “imprestáveis, inservíveis, inadequados, ante as notórias inconsistências técnicas e metodológicas que apresentaram”. No entanto, não apresentou os embasamentos de sua crítica. 

Em minha opinião, não é possível deslegitimar um estudo científico sem que as inconsistências que justificam essa deslegitimação sejam apontadas. Como pesquisadora que participou do estudo, gostaria muito de saber quais foram as inconsistências apontadas, que deslegitimam o estudo realizado pela AMBIOS e invalidam os seus resultados. Isso seria extremamente interessante, até porque, quando o estudo foi entregue, a Fundação Renova nos mandou uma série de perguntas, de questionamentos, solicitando esclarecimentos em vários pontos que estavam redigidos no texto do relatório da AMBIOS. E essas perguntas foram todas respondidas, detalhadamente. O rigor técnico e científico do estudo da AMBIOS é baseado na metodologia proposta pelo Ministério da Saúde, pelo departamento de vigilância em saúde ambiental e do trabalhador, da Secretaria de Vigilância em Saúde, para exatamente avaliar populações expostas a resíduos perigosos. Trabalhamos essa metodologia do Ministério da Saúde, ela é fruto de uma adaptação da metodologia americana da ATSDR (Agência de Registro de Substâncias Tóxicas e de Doenças), que foi realizada ao longo de mais de 20 anos de trabalho, com vários estudos realizados no Brasil, em áreas de passivos ambientais. Essa metodologia foi aperfeiçoada e adequada às condições e determinações do Sistema Único de Saúde (SUS), isso é muito importante. A lógica de atuação, a lógica de assistência, a lógica de vigilância do SUS que, agora mais do que nunca, a gente percebe como fundamental ter em um país do tamanho, da amplitude e da desigualdade que nós temos no Brasil. Essa metodologia é a do Ministério da Saúde preconizada para avaliar essas situações de populações expostas a resíduos perigosos, a áreas de passivos ambientais e é nela, e completamente nela, que foi desenvolvido o estudo da AMBIOS, dentro de todos os parâmetros preconizados pelo SUS desse país. O rigor técnico e científico foi absoluto.

Carmen Fróes, professora da Faculdade de Medicina da UFRJ e consultora da AMBIOS

Todos esses estudos foram feitos por profissionais da saúde, com as secretarias municipais de saúde, secretarias regionais estaduais e até o Ministério da Saúde teve participação em muitas decisões desse estudo que foi feito e, de repente, um juiz, que não é da área, decide que está errado. Eu não consegui entender com base em que ele decidiu que estava errado, até porque nós estamos diante de um crime. Num crime, a única pessoa que não pode apresentar soluções e decisões é o criminoso. No caso, a Renova representa o criminoso. Como ela vai fazer um estudo de saúde sem a participação dos profissionais de saúde que os atingidos acreditam e confiam? Eu sempre digo: é mais um rompimento de barragem, é uma forma de agredir de novo o atingido e uma violação de direito muito grande. Talvez tão grande quanto o rompimento da barragem, é alguém estar sentado numa cadeira, longe de tudo o que aconteceu, e decidir a vida dos outros, sem a participação dos outros, sem conhecer. É fazer receita médica por telefone, sem vir ao ambiente, sem conversar com as pessoas, sem saber quais são as testemunhas, quais são as provas que os atingidos levaram sobre esse lance da saúde. Os atingidos não foram ouvidos, quem foi ouvido foi só o criminoso. O criminoso é quem disse: ‘é desse jeito que nós vamos reparar nosso crime’?

Sérgio Papagaio, morador de Barra Longa

O Ministério Público Federal (MPF), a Defensoria Pública da União (DPU), a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE/MG) e a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPE/ES) recorreram das decisões do juiz da 12ª Vara com base em parecer técnico do Ministério da Saúde, em nota técnica da CT-Saúde, documento elaborado pelo Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesta-UFMG) e em nota técnica da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

O recurso foi aceito parcialmente pela Desembargadora Federal Daniele Maranhão. Dessa forma, o processo de reparação continua sendo com base nos estudos da AMBIOS e do Grupo EPA Engenharia e Proteção Ambiental. A decisão permite que a metodologia GAISMA seja modificada para se encaixar nos padrões definidos pelo Ministério da Saúde e pela CT-Saúde. Ainda cabe recurso das empresas.