A possível prescrição do crime

Comunidades atingidas temem pela prescrição do crime do rompimento da barragem de Fundão e, consequentemente, pela perda do direito de reparação aos danos. A possível prescrição faria com que as pessoas atingidas perdessem o direito de entrar com ações judiciais contra as mineradoras Vale, Samarco e BHP a partir do dia 2 de outubro de 2021. Como os danos causados pelas empresas não se esgotam e são continuados diariamente, e visto que ainda há pessoas que não foram reconhecidas como atingidas, o problema da prescrição tem se revelado como um grande entrave para as famílias.
Por Joice Valverde e Juliana Carvalho
O que diz a lei
As possibilidades acerca da prescrição, em matéria de Direito Civil, estão fundamentadas na Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, do Código Civil, legislação que regulamenta as relações jurídicas no âmbito privado. O artigo 205 determina o prazo de 10 anos para a prescrição, como regra geral, quando a lei não houver fixado prazo menor para situações específicas. Por sua vez, o 3° parágrafo do artigo 206 indica a prescrição em três anos para reivindicar a reparação civil, quando são causados danos materiais e imateriais que podem ser restituídos apenas por meio de reparação.
Contudo, no caso de desastres ambientais, não há uma legislação específica que regulamenta a questão do prazo de prescrição, e existem entendimentos de Tribunais Superiores de que não deve ocorrer prescrição no caso de reparação civil decorrente de dano ambiental, sobretudo por envolver, na maioria das vezes, a violação sistemática de direitos humanos. No caso do rompimento da barragem de Fundão, a ausência de uma diretriz legislativa específica com relação à aplicabilidade ou não da prescrição ou a definição de um prazo prescricional para o crime de Mariana mostram como é subjetiva a aplicação da prescrição quando se trata de algo tão peculiar e sem precedentes.
Isso acontece porque é reconhecido o direito à reparação dos danos materiais e imateriais decorrentes do rompimento da barragem de Fundão e, ao mesmo tempo, é inquestionável que esses danos ocorreram e ocorrem não só nos âmbitos sociais, econômicos e ambientais das comunidades atingidas, mas também alteram as condições mínimas de subsistência das pessoas atingidas, como o direito à segurança, à moradia e ao trabalho.
O que dizem os acordos
A discussão acerca da prescrição não é inédita em se tratando do desastre de Mariana, visto que, às vésperas de se completar três anos do rompimento da barragem de Fundão, no âmbito das Ações Civis Públicas (ACP) ajuizadas em decorrência do crime, foram pactuados pontos relacionados à prescrição, a fim de evitar o perecimento do direito à reparação das pessoas atingidas. Nesse sentido, em 26 de outubro de 2018, um Termo de Compromisso firmado entre Ministério Público Federal (MPF), Ministérios Públicos Estaduais de Minas Gerais e do Espírito Santo, Defensoria Pública da União (DPU), Defensorias Públicas de Minas Gerais e do Espírito Santo, e empresas Samarco/Vale/BHP, assim como a Renova, estabeleceu que não haveria prescrição do crime e do direito à reparação em 5 de novembro de 2018.
Na mesma época, a própria Renova afirmou, em seu site, que “acatou a orientação do Ministério Público de não informar sobre prazo de prescrição em suas negociações de indenizações” e que seguiria com os programas de reparação previstos no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). Na ocasião, as partes reconheceram a importância da indenização às vítimas e o compromisso com as ações reparatórias que estavam em andamento. De igual modo, no bojo da ACP específica aos danos às comunidades no entorno de Mariana, foi pactuada, em acordo celebrado em 2 de outubro de 2018, a interrupção do prazo prescricional para o ajuizamento de ações individuais de cunho reparatório. Essa data, para as ações individuais relacionadas às comunidades de Mariana, passou a ser o marco inicial da contagem da prescrição, uma vez que o Código Civil, no artigo 202, parágrafo único, dispõe que o prazo prescricional pode ser interrompido por vontade dos interessados e, a partir da data em que ocorreu a interrupção, começa a ser recontado.
Sendo assim, diante da inexistência de uma legislação específica para regulamentar a ocorrência ou não da prescrição no caso do rompimento da barragem, há um receio de que seja aplicado, pelo Poder Judiciário, o entendimento de que a prescrição do direito de ação aconteça em 2 de outubro de 2021, – mesmo que, ainda hoje, não se possa mensurar a extensão dos danos suportados pelas famílias, que se perpetuam no tempo, bem como diante do fato de que a entidade criada para garantir a reparação integral dos danos causados não tenha entregado sequer uma casa dos reassentamentos que deveriam ser construídos e que tenha descumprido, inclusive, três vezes o prazo de conclusão estipulado inicialmente para março de 2019.
Uma nova ameaça
A proximidade com o dia 2 de outubro de 2021 reacende o debate sobre as interpretações jurídicas que indicam ou não a aplicabilidade da prescrição do direito à reparação civil decorrente de crimes ambientais. O anseio das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão é o de que seja reconhecida a imprescritibilidade do direito à reparação integral, sob a responsabilidade das empresas Samarco/Vale e BHP. É preciso ter em mente que a prescrição se aplica quando não há atividade jurídica por parte dos requerentes.
Por outro lado, o simples fato de a Renova ter sido contratada para gerir toda a reparação às vítimas e, apesar de sua ineficiência no processo, reconhecer esse compromisso firmado por meio da execução de programas e ações, deixa evidente a consciência de sua responsabilização pelo crime cometido e o respectivo dever de indenizar. Isso foi expresso, inclusive, como justificativa para assinar os Termos de Compromissos que afastaram a prescrição em 2018.
Ministério Público de Minas Gerais indica a judicialização
Como uma forma de se prevenir diante de uma possível prescrição, a orientação dada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) é a de que as pessoas atingidas judicializem os processos antes de 2 de outubro de 2021. Quando a ação é levada à Justiça, deixa-se de contar o prazo prescricional.
É importante destacar que essa ação deve ser ajuizada via defensor público ou advogado particular. As assessorias técnicas prestam um serviço extrajudicial e cabe a elas apenas orientar as pessoas atingidas e realizar o acompanhamento nas negociações extrajudiciais.