Os trilhos do crime

[vc_row][vc_column][vc_column_text]No dia 25 de janeiro de 2019, o crime se repetiu. De propriedade da Vale, a barragem da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, rompeu. 252 pessoas foram mortas e 18 permanecem não encontradas, segundo dados da Defesa Civil de Minas Gerais, até o fechamento desta edição. Quando se é atingido(a), a vida muda. Não é possível nem enxergar o trem da mesma forma.[/vc_column_text][thb_gap height=”50″][vc_column_text]

Por Marina Oliveira

Com o apoio de Wigde Arcangelo

Foto: Wilson da Costa

[/vc_column_text][thb_gap height=”50″][vc_column_text]Meu nome é Marina e eu sou mineira. Sou de Brumadinho. Eu fui criada romantizando o barulho do trem. Desde pequena, desenhava o trem que passava pela minha cidade. Eu chamo tudo o que é bom de “trem”. Eu fui criada pra falar com orgulho do minério, do ferro e das coisas boas que eles me trouxeram. Eu nunca estranhei esses buracos nas montanhas e nas serras da minha cidade. O trem sempre chegou vazio e saiu cheio, sem trazer nada em troca. Me formei em Relações Internacionais na PUC-Minas, no dia 24 de janeiro de 2019. Meu sonho era trabalhar na Vale. No dia 25 de janeiro, às 12h28, eu vi a Vale matar rio, matar peixe e matar gente. Nesse dia, eu comecei a problematizar os impactos de uma mineração irresponsável, que coloca o lucro acima da vida. 

Eles soterraram 272 pessoas [sendo duas crianças nas barrigas de suas mães, não reconhecidas pela Vale], dezenas de casas, hortas, rio, animais, vegetações, culturas etc. Desde então, tenho atuado, contratada pela Arquidiocese de Belo Horizonte, como articuladora social das comunidades atingidas pelo crime. Meu trabalho é acompanhar as comunidades, identificar as demandas, dar os encaminhamentos possíveis e sangrar junto. Dezoito famílias ainda esperam encontrar os corpos de seus familiares para se despedirem. As buscas ainda não terminaram. Dezenas de agricultores atingidos não tiveram qualquer suporte até hoje. Muitas comunidades estão sem água por causa da contaminação dos rejeitos da barragem. O aumento da taxa de suicídio e o índice de depressão são reais.

Enquanto isso, as mineradoras gastam milhões de reais em publicidade sem concluir as reparações, indenizações e compensações. Eles se preocupam apenas com a Bolsa de Valores. Eles não querem ser responsabilizados criminalmente pelo que fizeram, pois estariam criando parâmetros internacionais para crimes minerários. Eles querem continuar cometendo crimes com impunidade. Eles gostam de comprar e de controlar todo o território. É a primeira vez que eu vejo isso: o assassino que se senta à mesma mesa da vítima e ainda mostra como vai ser daqui pra frente. 

O Estado? Coitado. Preso na minério-dependência, não consegue sequer apoiar os atingidos de maneira justa. Em setembro deste ano, participei de um evento da ONU para falar de Brumadinho, no Chile. Lá, estava a representante da Vale, com seu traje social, falando sobre direitos humanos e sustentabilidade. Eles participam desses espaços para pegar o carimbo de responsabilidade social para continuar matando em outros lugares.

A pergunta que eu me faço é: para quem devo gritar? Para o Estado? Para a Vale? Para a ONU? Quem vai nos ajudar? Os interesses financeiros envolvidos são muito poderosos. Quem dera existisse uma receita para a reconstrução de uma cidade. Eles estão acostumados a romper barragem:  Mariana, Brumadinho… Mas uma cidade nunca estará pronta para se ver coberta de lama de rejeito.

Eles chamam o que aconteceu de acidente, de evento. Evento, pra mim, é festa. Acidente, pra mim, é quando a gente se queima fritando ovo. O que aconteceu na minha cidade é um crime. Crime, porque houveram trocas de e-mails entre a chefia para relatar a instabilidade da barragem; porque eles pressionaram a empresa terceirizada a atestar o laudo de estabilidade; porque o refeitório e o prédio administrativo ficavam logo abaixo da barragem; porque as rotas de fugas assinaladas pelo relatório de risco produzido pela empresa estavam erradas. Ou seja, quem correu para os pontos que eram considerados seguros está, hoje, soterrado.

Para quem gritar? Eu escolho gritar para vocês: jovens que serão os próximos engenheiros, advogados e deputados (talvez sejam os próximos atingidos também). Eu não acredito neles, mas eu acredito em vocês. Eu tenho o privilégio de viver a conversão real e profética, orientada pelo impacto de um crime contra as várias formas de vida. Espero que muitas outras pessoas possam também se converter. A gente não pode beber, comer e respirar minério. 

A gente pode mudar. É trabalho de gerações e gerações. Mas a gente pode. Porque, se eu aprendi que o “trem” é bom, daqui pra frente, eu vou ensinar que ele é ruim. E eu jamais, jamais, vou deixar de estranhar os buracos que fizeram nas montanhas, na minha cidade e no meu coração. O trem é ruim. Ele levou nossas riquezas embora. Ele matou nosso rio. Ele levou nossos amigos à força. Ele destroçou nossa cidade.

Marina Oliveira, moradora de Brumadinho e articuladora social da Arquidiocese de Belo Horizonte

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