Marcas dos traumas coletivos

Os traumas coletivos causam marcas, muitas vezes, difíceis de lidar. É necessário, no entanto, que se fale dessas questões. No intuito de promover esse diálogo, trouxemos dois textos sobre esses traumas e que conversam entre si. Sérgio Papagaio, morador de Barra Longa, faz uma alusão a três tragédias de naturezas diferentes, mas que se assemelham aos danos causados à saúde mental de quem foi atingido(a), que são: o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS); o deslizamento na região serrana do Rio de Janeiro; e o rompimento da barragem da Samarco/Vale/BHP Billiton, em Mariana. Ele enfatiza os danos imateriais, invisibilizados no processo. Já Maíra Almeida, trabalhadora de saúde mental na Prefeitura de Mariana, aborda as questões do luto, que toca tanto a esfera individual quanto a coletiva.
Por Maíra Almeida e Sérgio Papagaio
Com o apoio de Wigde Arcangelo
A loucura
Por Sérgio Papagaio
Tem gente louca, dentro do poço.
Tem barro quente, dentro da mente, Boate Kiss fez esquentar.
Tem gente louca, e não é pouca.
É barro doente dentro da gente, quer me levar,
Quero voltar, sua casa não dá pra morar, aqui não quero ficar, tome esta pílula, pra melhorar. A minha casa não está lá.
Minha menina na boate, Kiss dançar, debaixo da lama foi morar. Me dê outra pílula pra eu tomar, cê tem alguma pra eu não lembrar?
Tem gente louca, pra sua vila reassentar, em Mariana, em Barra Longa, na Serra do Mar, em todo lugar.
A minha vida, não foi aqui que eu quis plantar.
Quero voltar, buscar a vida que ficou lá.
Tornei voltar, e a vida minha não tava lá.
Achei uma chave, e esta vida vou desligar,
Não. Existe uma meta, continuar… Cadê Maria? Não quer falar, fechou a vida, e a minha morte ela abrirá.
O luto
Como assimilar a ideia de que, para um passado, não tem retorno, mas existe, no presente, uma vida? Como entender que não é sobre voltar, é sobre ir? Como compreender que não há volta para uma vida de antes, mas uma ida para uma vida futura e que, apesar de não ser a que se quis plantar, também pode gerar frutos?
Por Maíra Almeida, trabalhadora de saúde mental na prefeitura de Mariana
O fazer luto diante de perdas vivenciadas por todos nós, no nosso cotidiano de vida, seja do emprego, de um amor, ou de pessoas queridas, torna-se pauta urgente diante de rompimentos, lamas, incêndios, tragédias, crimes e pandemias que afetam populações e comunidades.
O sofrimento diante de perdas, o trauma, considerado como uma ferida, ainda que seja sentido e vivenciado de maneira única, não remete a um efeito uniforme ou comum. A vivência da perda é singular, mas não precisa ser solitária, os esforços para atravessá-la podem ser vários, plurais, múltiplos, muitos. Em situações de violências e violações continuadas de direitos, o imperativo do coletivo torna-se ainda mais urgente.
Marcas, registros, totens, símbolos, rituais, luta, solidariedade, memória!
O processo de luto não é sobre não lembrar, é sobre não esquecer, é o esforço para construir uma memória do que está ausente, é construir e cobrir de lembrança.
Para que nunca mais se esqueça! Para que nunca mais aconteça! É necessário construir registros individuais e coletivos sobre os traumas psicossociais dos atingidos, sobre aquelas dores que não são de um, mas também de vários. É juntar esforços para a construção de uma memória coletiva. É juntar esforços para uma luta coletiva! E lutar não é loucura.
Somos um Estado e somos um país de atingidos. Que cada registro de memória contada, narrada, falada, escrita, fotografada, gritada, seja fonte de inspiração e de resistência nesses tempos duros.
Onde pulsa vida, poesia, criatividade, afeto, inventividade, nasce flor! Ainda que na lama.
* Texto inspirado no poema do Sérgio Papagaio, “A loucura” e na entrevista com a psicóloga Mariana Tavares, “O luto pela Covid é um processo coletivo”, Brasil de Fato.