Todo amor que houver nessa vida

Ainda que diversos núcleos familiares tenham se alterado e sigam mudando desde o crime do rompimento da barragem, boa parte das famílias atingidas foram formadas nos territórios. As memórias do cotidiano, das festividades e das reuniões nas comunidades são atravessadas pelas histórias dos amores construídos nesses locais. Assim como Vera Lúcia e Amador ou Marly de Fátima e Francisco, muitas pessoas atingidas conheceram os(as) seus(suas) companheiros(as) na infância e desfrutaram das tardes de conversa na beira do rio, compartilharam memórias da adolescência e participaram das festas dos padroeiros das comunidades. Existem, também, aqueles(as) que conheceram seus(suas) companheiros(as) em territórios vizinhos, como é o caso de Renata Cristina e Antonio dos Reis Silva, mas que guardam lembranças de momentos importantes de seus relacionamentos vividos nos territórios atingidos.
Neste mês de junho é comemorado o dia de Santo Antônio, popularmente conhecido como “santo casamenteiro”. Nesta data, muitos fiéis celebram o amor e a união matrimonial. As histórias de amor que nasceram nas comunidades atingidas nos ensinam sobre o companheirismo, a força e a união dessas pessoas que seguem juntas e se fortalecem na luta, visto que amar é, também, um ato revolucionário.
Por Marly de Fátima Felício Felipe, Renata Cristina
do Nascimento Silva e Vera Lúcia da Silva
Com o apoio de Júlia Militão

Quando tudo começou…
A nossa história começou quando eu estava na escola e pedia a ele [Francisco de Paula Felipe] para me ensinar os deveres. Éramos bastante amigos, nossa amizade sempre foi boa, cresci ao lado da casa dele, e aí a amizade foi ficando colorida, percebi que estava apaixonada, mas eu só tive certeza disso quando ele foi trabalhar fora. Aí a saudade aumentava!… Na época, a gente não tinha telefone e, antes de ir embora, ele me escrevia cartas, umas cartas bem românticas. Ele passava lá em casa pra despedir dos meus pais e de mim, e, quando ele chegava a gente se encontrava.
Um dia, uma pessoa viu a gente conversando e falou pra minha mãe que a gente tava namorando. Aí minha mãe perguntou pra gente e eu falei: “acho que sim”. Algumas pessoas eram contra o nosso namoro, mas ele pegou e pediu a ela pra me namorar, foi aí que começamos a namorar.
Marly de Fátima Felício Felipe, moradora de Bento Rodrigues
Falar de amor, um amor que nasceu numa simples comunidade, como Gesteira, é muito comovente pra mim. Eu e meu marido [Amador Marques da Silva] temos um relacionamento muito saudável, muito ligados um ao outro. Eu conheci o meu marido na sala de aula, éramos crianças, crescemos juntos, estudamos juntos, convivemos juntos… de criança, adolescentes, jovens, até que chegou um dia em que decidimos namorar. O namoro durou uns três anos e meio, quase quatro, e decidimos nos casar. Foi uma convivência constante, da infância até a juventude, decididos a ter um compromisso a dois.
Vera Lúcia da Silva, moradora de Gesteira
Eu conheci o meu marido [Antonio dos Reis Silva] em Antônio Pereira. Ele era lá de São Francisco de Paula, perto de São Paulo, e veio pra cá para trabalhar no final de 2002. Eu morava em Bento e frequentava o Pereira, porque meus irmãos trabalhavam lá, no garimpo. Foi aí que a gente se conheceu. Eu tinha 22 anos e ele tinha uns 27, meu irmão conheceu uma menina em Antônio Pereira também e a irmã dela tinha um bar, eu frequentei lá e nós nos conhecemos. Foi tudo muito rápido, em questão de meses começamos a namorar e era muito bom!
Renata Cristina do Nascimento Silva, moradora de Bento Rodrigues
Lembranças das comunidades
Do meu tempo de namoro, os momentos mais felizes eram quando a gente se encontrava, porque, na minha época, os pais eram muito rígidos e a gente só se encontrava aos finais de semana. Mesmo a gente morando perto um do outro, era aos sábados e domingos os dias de encontrar. E os momentos mais felizes com ele, na comunidade, eram os momentos festivos. A nossa comunidade era muito festiva, festas religiosas, festas culturais, né, faziam bailes, cavalgadas, quadrilhas… E também quando a gente construía algo que nos deixava felizes. Tenho muita saudade do meu Gesteira. Nunca mais vão devolver, pra nós, a alegria da nossa comunidade não. Vai ser tudo diferente… Mas devolvendo pra nós a nossa comunidade é o que importa, porque a gente pode fazer dela o que era, né? Gesteira, pra mim, é tudo, é família, companheirismo, parceria.
Vera Lúcia da Silva, moradora de Gesteira
A gente gostava muito de ir ao rio, porque morávamos perto. A gente conversava muito no gramado, lá perto de casa, e ficava horas, nem percebia passar, a vontade que dava era de parar o tempo, porque a hora passava muito rápido. A gente também ia ao campo de futebol quando tinha jogo, o time de Bento jogava contra os outros times e a gente assistia… E, quando tinha festas do padroeiro, sempre tinha som, né? Ficava até de noite e a gente ficava ouvindo músicas lá na praça.
Marly de Fátima Felício Felipe, moradora de Bento Rodrigues
Ele ia lá pra minha casa, no Bento, todo final de semana. A nossa relação na comunidade também era muito boa, porque criamos muitas amizades, tanto eu quanto ele. Nós íamos muito no bar da Sandra, no bar do Barbosa. Jogávamos bola… A gente se divertia muito! Nossos amigos estavam sempre em volta da gente, nos encontrávamos todo final de semana.
Nós já estamos juntos há 18 anos e temos dois filhos. Eu e meu marido, graças a Deus, temos uma relação muito boa. Nós dois começamos a construir a nossa casa lá no Bento. Uma lembrança de nós dois é essa, depois da gente se casar, porque nós começamos a fazer a nossa casa… E aí que acabamos de fazer, ficamos em uma alegria tão grande! Nós estávamos acabando de arrumar ela quando aconteceu o rompimento.
Renata Cristina do Nascimento Silva, moradora de Bento Rodrigues

Companheiros para toda hora
A nossa relação é uma relação muito boa, graças a Deus. Com o rompimento da barragem, eu fiquei muito ruim, porque a minha mãe estava desaparecida, até que, um dia, acharam e ela já estava falecida… E ele sempre esteve do meu lado nas horas mais difíceis, cuidando de mim e das nossas filhas, ele não se afastou de mim hora nenhuma.
Meu marido foi meu primeiro namorado, então foi só ele. Já temos 15 anos de casados e mais sete de namoro. Muita gente fala comigo que é difícil a pessoa namorar com a outra pela primeira vez e casar, e com a gente aconteceu isso. Graças a Deus, estamos casados até hoje e eu pretendo ficar por muitos e muitos anos. Ele é o meu marido, meu companheiro e o meu melhor amigo, depois de Deus.
Marly de Fátima Felício Felipe, moradora de Bento Rodrigues
Ele é muito carinhoso, amoroso, apegado com os filhos e comigo. E, depois da lama, eu percebi que ele tem um amor grande por nós, pela comunidade, pelo lugar e pela casa onde a gente morou, que foi o nosso sonho, construída com muita luta, muita dificuldade, mas com muita alegria e muita esperança de crescer. Esse amor permanece até hoje. Temos uma convivência muito boa, um respeito muito grande… E veio a lama, agora essa pandemia, e a gente percebe que o nosso amor é incondicional e é eterno. É um amor muito lindo. Hoje, um cuidando do outro, porque os filhos já são casados. Então eu tenho uma vida de amor muito linda, porque é um amor verdadeiro e é o único amor da minha vida, porque foi o meu primeiro e único namorado. E sou muito feliz até hoje, essa felicidade é completa. Essa é a minha história de amor, uma história de convivência de 45 anos de matrimônio.
Vera Lúcia da Silva, moradora de Gesteira