Dois anos de muitas histórias

Por Dona Tita, Iracema Pereira, José Mauro, Maria Conceição, Marcelina Xavier e Seu Nonô
Com o apoio de Daniela Felix e Miriã Bonifácio

O Jornal A SIRENE tem a difícil e necessária tarefa de narrar a história de um crime e de suas vítimas. Ao longo desses dois anos de publicação, os personagens que visitaram essas páginas deixaram relatos emocionantes e ensinaram muito sobre a vida, os desafios pessoais e coletivos, as surpresas e, talvez, principalmente, a superação sobre tudo o que lhes aconteceu. Revisitamos algumas dessas pessoas para tentar contar o que mudou do
primeiro ano para cá. E, se não mudou, por quê? Quais respostas eles ainda não encontraram? O que eles ainda têm a dizer?

O pior já passou?

Demoramos para encontrar a casa de Dona Marcelina, que vive com seu filho Júlio César em uma rua estreita do bairro Colina, em Mariana. Ela é de Bento Rodrigues e participou da edição número 1 do Jornal, quando contou sobre como sobreviveu à lama se agarrando em um pé de abacate. Na ocasião da primeira entrevista, março de 2016, havia uma questão muito repetida por aqueles que não viveram a tragédia do dia 5 de novembro, a de que o pior já tinha passado. Hoje, Dona Marcelina até concorda com essa opinião, já que está recuperada da fratura que teve no fêmur e consegue se locomover um pouco melhor. Mas isso não quer dizer que foi fácil. Esperando voltar para o convívio de sua comunidade, a “dona que morava na beira do rio” segue, com o sorriso de sempre.

Para Marcelina Xavier, moradora de Bento Rodrigues, o pior “ficou” lá no
dia 5, quando foi resgatada da lama de rejeitos. (Foto: Daniela Felix/Jornal A Sirene)

Iracema Pereira anseia pela reabertura de sua sorveteria no novo terreno
de Paracatu. (Foto: Daniela Felix/Jornal A Sirene)

Como está o seu negócio?

Iracema nos recebeu na cozinha de sua casa, no bairro Colina, em Mariana, enquanto terminava o almoço. Sentada no sofá, releu a matéria publicada na edição número 5, em agosto de 2016, que falava sobre o trabalho que ela desenvolvia na sorveteria que tinha em Paracatu. Iracema não esperou para responder que nada havia mudado daquela entrevista pra cá. Os sorvetes naturais, com a nata do leite e as frutas colhidas no quintal de casa, de acordo com a “época” de cada uma, não conseguem existir da mesma maneira sem a comunidade. O que aumentou foram os consertos de roupa, que também fazia. O sentimento por trás da frase “Eu quero minha casinha de volta”, agora, carrega o peso de dois anos de espera.

A folia de reis continua?

José Mauro conta que depois que saiu na edição número 5, em agosto de 2016, muitas pessoas ficaram perguntando como estava o grupo de Folia de Reis lá de Gesteira, em Barra Longa. Ele diz que foi bom para reunir gente que quer ajudar e também para continuar fazendo as apresentações em outros espaços. Atingido não reconhecido, até hoje não foi procurado para dizer sobre suas perdas e danos com o rompimento de Fundão. Acredita que o jornal ajuda como um alerta para as histórias e as coisas importantes que as pessoas tem a dizer. Está organizando um Encontro de Congados para o mês de novembro. Uma festa que ele espera que estejamos lá, cobrindo tudo e divulgando as manifestações que importam e dão sentido para quem segue atingido.

José Mauro, morador de Gesteira, ainda não foi reconhecido como
atingido. (Foto: Davidy Silva Marques)

Voltou para casa?

Enquanto Dona Tita terminava o banho, conversamos com os três filhos que dividem a casa com ela, em Mariana. Cota, Naná e Nonô, assim como fizeram na edição número 3, em junho de 2016, ajudaram a contar a história da mãe. Eles falaram sobre como ela mudou desde que precisou sair correndo de Ponte do Gama e deixar para trás uma vida na roça e os costumes vividos em seus mais de 90 anos – “Ficou muito nervosa”. Também disseram sobre como o sonho de Dona Tita voltar para casa parece distante e burocrático. Nonô ainda disse que, para reparar o terreno de vargem, a venda dos ovos, da produção de queijo e da plantação de mandioca, o projeto da casa de campo para os amigos que iam acampar e a irrigação que vinha da queda da cachoeira, o que se espera é que as empresas, além de devolverem o justo, comprem uma propriedade para que eles possam ter geração de renda. Saímos de lá com o pensamento de que essa família sente, em todos os aspectos, que a perda foi grande demais.

Tita sonha em levar a mesma vida que tinha em Ponte do Gama. (Foto: Daniela Felix/Jornal A Sirene)

Ainda sente medo?

Antes de chegarmos até Dona Maria Conceição, passamos por uma casa pequena, na beirada da rua de terra, de cor azul escuro e aspectos de inacabada. Essa é, como contamos na edição número 3, em junho de 2016, a única residência atingida por lama na comunidade do Borba. Dona Maria, apesar de estar vivendo próximo à casa, diz que não sabe como está se dando a reconstrução. Não gosta de olhar para a antiga casa relembrar tudo o que viveu naquele dia 5. Espera, sim, voltar e também afirma que está mais tranquila quanto ao medo que sentia, pois não acredita que uma nova barragem possa romper de novo. Devota de Nossa Senhora Aparecida, ela pega a imagem nas mãos para nos mostrar o único objeto que salvou de tudo o que perdeu. O querer de Dona Maria pode parecer pouco diante de tudo a que ela tem direito, mas é uma vontade que, de tão simples, mostra quem ela é de verdade.

Maria Conceição ainda espera pela reconstrução de sua casa na comunidade do Borba. (Foto: Daniela Felix/Jornal A Sirene)

Nonô conta que a vida em Pedras se tornou inviável sem vizinhos e água potável. (Foto: Daniela Felix/Jornal A Sirene)

Já consertaram sua vida?

Encontramos Seu Nonô moendo café no pilão de sua casa na comunidade de Pedras e vestindo uma camisa azul muito parecida com a que ele usava quando foi registrado em abril de 2016, na edição número 2 do Jornal. Ele nos contou que tem diminuído a frequência das visitas ao subdistrito, pois anda chateado com as formigas que destroem a plantação. Também disse que a mulher e os filhos não têm mais interesse em voltar para a comunidade, e que, dessa maneira, ele também não poderia viver lá sozinho. Até o momento, ninguém deu conta de consertar a vida de Seu Nonô, que agora mora em Águas Claras. Perguntamos se ele tinha conseguido outra mula, da qual lamentava a perda na matéria que publicamos em 2016. Além de não ter reavido o animal, Seu Nonô disse que, desde então, nunca mais andou a cavalo.