Sete anos: infância, identidade e memória

Bento Rodrigues, Paracatu, Gesteira e tantos outros lugares que foram parcial ou totalmente devastados pelo rejeito de minério em 2015 não serão esquecidos. Muitos já partiram ao longo dessa árdua caminhada, que completa hoje, 5 de novembro, sete anos, porém a esperança reaparece nas crianças, que, apesar do trauma precoce, nutrem por esses territórios um grande afeto. Elas nos fazem acreditar no futuro e na perpetuação da memória.

A idealização da vida no interior, cercada de plantas e animais, com brincadeiras ao ar livre e a segurança de saber exatamente quem são seus vizinhos e quem anda por ali, sobrevive com os moradores e as moradoras das comunidades atingidas que precisaram se deslocar forçadamente para Mariana ou outras zonas urbanas. Os territórios de origem estão presentes na mente até dos que não os viveram antes do crime, a partir da força das  comunidades, que insistem em manter de pé suas tradições, seus modos de vida e reafirmar o pertencimento.

As crianças sabem quem são e o que as move. Nutrem sonhos, como os adultos e as adultas. A realidade que desejam está na mente e nos corações, ainda sem grande possibilidade de ser vivida plenamente hoje. Elas também são luta.

Por Conceição Aparecida Sacramento, Joelma Aparecida de Sousa (Juma), João Gabriel Marques da Silva, Stefani Souza Inacio, Lucas Sales e Miguel Lucas Gonçalves Sacramento

Com o apoio de Crislen Machado

Fotos: André Carvalho

“O João devia ter nascido dia 26 de janeiro de 2016, mas nasceu dia 25 de dezembro, com um mês a menos. Eu tomei sedativo quando a barragem estourou porque a gente estava trabalhando lá na área e, quando descemos, já estava tudo destruído. Falaram que a gente tinha perdido a família toda, então foi aquele susto. Precisei tomar muito remédio, minha pressão nunca mais foi a mesma. Fiquei com a pressão alta até ganhar o João.

Eu fui descobrir a gravidez do João quando já tinha seis meses, em setembro de 2015. Em outubro, eu vim pra Mariana receber o salário e aproveitei pra comprar as coisinhas dele, porque eu não tinha nada. Comprei uma sacolada de roupinha, manta, toalhinha, um bercinho e outras coisas. No início de novembro, a barragem rompeu e eu vi tudo boiando por cima da lama. Foi uma dor horrível, fiquei sem rumo e chorei tanto. Minha irmã também estava grávida na época e uma amiga minha, a Vilma, precisou correr com uma bebê de 45 dias no colo e se esconder no mato. Todo mundo ficou sem chão e sem saber o que fazer. 

Depois que o João nasceu, a gente continuou indo lá, mas ele só conhece o que veio depois, o resto é tudo idealizado da cabeça dele. Ele não conhece Bento [antes de 2015] nem por foto. Mas ele tem vontade de morar lá na roça, tá no sangue. O sonho dele é ter um sítio com galinha, andar de moto, fazer trilha, ir pra cachoeira… Quando a gente tem a oportunidade de sair fim de semana, ele pede pra ir pra um sítio. Mês passado, ele me falou que esse ano ele quer a festa de aniversário num sítio, com muito mato, mas que não quer bolo, quer uma mesa de café da manhã.

Você tem que ver quando o João vai no Bento. Ele corre pra lá e pra cá, ele é apaixonado por aquele lugar. Ele vive falando que queria ter um cantinho pra poder acordar de manhã e tratar dos bichinhos dele, mas aqui não tem como. Eu comprei uma cachorrinha pra ele, mas, na minha casa, não tem como cuidar, fica na casa da  minha mãe e, ainda assim, não tem espaço. 

Até no reassentamento é difícil porque lá vai ser uma cidade, uma segunda Mariana, não é Bento mais não. A segurança que a gente tinha antes de dormir com a janela aberta, de deixar seu filho brincar na porta de casa, isso a gente não vai ter nunca mais. Foi tirado do João e do Cristian, que, na época, tinha sete anos. Ele está mais adaptado aqui, mas ainda é difícil. Pra gente, que nasceu na roça, adaptar na cidade não é fácil. Vai fazer sete anos que tô aqui e ainda não me adaptei. Eu acordo com a imagem de casa na cabeça todos os dias.” 

Joelma Aparecida de Sousa (Juma), moradora de Bento Rodrigues

“Eu quero ir pro Bento de novo, ter uma casa lá, com patinho, galinha, cachorrinho, papagaio, todos os bichos, até vaca, porque eu gosto é de brincar na terra, sentir o cheiro da terra. Eu quero é voltar lá pro Bento pra brincar com meus coleguinhas na rua, eu gosto muito de ir pra lá brincar e andar com moto de trilha. Lá é muito legal.” 

João Gabriel Marques da Silva, 6 anos, morador de Bento Rodrigues

“Tenho vontade de ir pro Bento. Eu gosto de brincar com o João. De pular corda, pega pega, balanço. Gosto mais do Bento, porque gosto de brincar. Me contam que a barragem estourou. Eu sinto que sou do Bento. Já fui lá na escola, eu e o João. Lá tem uma quadra bem grande, dá até pra correr, até o final, a gente fica até cansado de apostar corrida.”

Stefani Souza Inacio, 7 anos, moradora de Bento Rodrigues

“Na época, eu tinha quatro anos e, nesse dia, eu não estava em Bento. Eu estava na escola e, quando eu cheguei, à tarde, recebi a notícia do que tinha acontecido. Eu chorei e gritei à minha mãe: “mãe, o Bento estourou, a barragem estourou”. Eu tentei ligar pro meu pai, mas ele não atendia, eu fiquei preocupado e chorei, mas aí depois meu pai chegou e falou que tava bem.

Apesar disso, eu sinto e sei que sou morador de lá. Vou lá sempre, passo as férias e o tempo que fico lá é muito bom. Quando eu vou pro Bento, eu aproveito o tempo andando a cavalo, eu vou à cachoeira, na igreja, eu jogo bola na quadra, porque a quadra não foi atingida. Quando eu vou pra lá, eu levo pipa e fico lá brincando. Também vou para o sítio da dona Norma, que fica lá dentro do Bento, e ficamos lá tratando dos animais. Eu gosto muito de cavalo, aí um amigo do meu pai viu isso e toda vez que vamos lá ele arruma os cavalos pra gente andar.” 

Lucas Sales, 11 anos, morador de Bento Rodrigues    

“Lá no Bento, a liberdade era outra, hoje a gente sai pra brincar com os meninos e tem que ficar olhando porque você não sabe quem tá perto. A ideia era a gente ficar quietinho lá, criar família. Quando aconteceu o rompimento, nós ficávamos muito em Belo Horizonte por causa do Rafael, era questão de chegar e precisar levar ele de novo. O Miguel viveu muita coisa, foi tudo seguido, o rompimento e a morte do irmão. Rafael faleceu dia 8 de julho de 2016, no dia do aniversário do Miguel, então muita coisa ele pegou e guardou na cabeça. 

Ele lembra de algumas coisinhas lá do Bento, fala muito e também vai muito lá. Meu marido tem umas criações, então ele vai junto com o Jordan e com meu irmão pra tratar. Esse final de semana mesmo ele tá esperando o pai dele chegar pra ir. Todos os três gostam de roça, a Marina, quando chega lá, fala: “nossa, mãe, que ar gostoso, que natureza gostosa, eu queria morar aqui”. Eles sentem que o lugar menor é diferente, a liberdade é outra, o brinquedo é outro. Aqui o Miguel e a Marina não são de brincar na rua não, mais dentro de casa mesmo. Miguel é mais fechado, mais sério.

Mas quando a gente vai lá, eu faço questão de mostrar a casa onde vivíamos, onde foi a festa de casamento de mamãe e papai, porque a quadra ainda tá de pé. O Miguel fala que lembra dos detalhes que chamou atenção na época. Quando a gente passa lá na porta de casa, eu falo pra eles que a mamãe morava ali. Chega esse tempo de chuva, uma flor nasce até hoje lá na entrada, ela resistiu à lama. 

Minha casa foi atingida diretamente, não sobrou quase nada lá. Nessa época do ano tinham uns pés de jabuticaba que ficavam um do lado do outro, dava pra andar no meio. Eu e minha irmã levantamos de manhã e ficávamos olhando, mas aí a gente ia arrumar a casa primeiro e depois passava a tarde inteira chupando jabuticaba.

A gente agradece a Deus pela vida e lamenta muito os que foram. Quando aconteceu, eu estava em BH com o Rafael e o Miguel, sem saber direito as notícias, ligando pra todo mundo, sem saber nada e com medo de todos terem morrido. 

Apesar disso, eu sofro pelo que perdi. Eu tinha foto grávida do Rafael e hoje eu não tenho quase nada, as fotos que tenho dele são praticamente todas dentro do hospital. Mas, de uma forma ou de outra, eu não deixo os meninos esquecerem, não. Toda vez que vou lá, eu falo com eles, porque a gente tá no meio do caminho, a gente vai indo e eles vão chegando.”

Conceição Aparecida Sacramento, moradora de Bento Rodrigues

“Eu não gosto de morar em Mariana, quero morar na roça que é muito melhor. Eu gosto muito da roça, da cidade eu não gosto tanto porque é estranho andar na rua cheia de estranho e ficar longe dos amigos. Eu quero morar na roça pra poder andar de cavalo, brincar de assustar os outros, brincar de pique-esconde no meio do mato, isso é legal.

Lá no Bento, o meu tio faz cavalgadas até Camargos ou Santa Rita e eu sempre vou. Uma vez, eu fui e meu pai também foi, mas a égua que eu fui cansava muito rápido e eu passei foi aperto e até caí na ladeira. 

Depois disso, uma vez, eu estava lá e senti um cheiro desagradável, cheguei perto e vi que era bicho morto, aquela égua estava com a pata machucada e não conseguia levantar, isso porque já tinha um tempo que eu e meu pai não podíamos ir lá pra cuidar. Ela criou, o potrinho morreu e eu chorei tanto. Eu fiquei triste e comecei a chorar lá em casa, porque já morreram três éguas.

Aqui, eu ando de bicicleta com meus primos e já levei uns tombos também. Acho que puxei minha mãe, porque, lá no Bento, ela fazia muita bagunça, andava a cavalo sem sela e tudo quando era criança. 

A gente ocupa a cabeça e acaba tendo muita ideia também, tem até o caso meu e do meu amigo que queríamos seguir uma carreira na música, mas não deu certo não, porque a gente não conseguia decorar as letras. Tem umas que eu sei, tipo essa: “meu cavalo é capa de revista / Arquibancada levanta / Quando ele entra na pista / Meu cavalo é rei, é campeão / Manda boi que meu cavalo / Vai botar ele no chão / Encostei na cancela / Protetor colocado / Locutor anuncia / ‘Pode descer o gado’ […].” Eu gosto dessas músicas raiz, se tivesse um palco aqui, eu cantava pra todo mundo escutar.”

Miguel Lucas Gonçalves Sacramento, 10 anos, morador de Bento Rodrigues