Escola também é casa

Pés infantis descalços sobre piso de concreto

Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão provocou um deslocamento forçado das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo para a sede de Mariana. Essa separação desarticulou muitos laços comunitários e cotidianos. A escola se tornou um dos únicos espaços seguros de acolhimento e encontro das pessoas atingidas, sobretudo das crianças e dos adolescentes.

Ainda assim, essa escola que frequentam, hoje, é muito diferente dos lugares familiares em que estudavam. Em vez de ir e voltar do colégio a pé, agora precisam de ônibus da Fundação Renova. A sensação de liberdade na caminhada de casa à escola foi trocada por preocupações com segurança. Meninos e meninas da Educação Infantil até o Ensino Fundamental II, desde o crime da Samarco e suas controladoras, Vale e BHP, foram arrancados de lugares que conheciam, em alguns casos, desde muito pequenos.

É ainda nesse contexto que, em fevereiro, estudantes das escolas municipais de Bento Rodrigues (EMBR) e de Paracatu de Baixo (EMPB) devem voltar às aulas presenciais para mais um ano letivo. Eles têm vivido seguidos processos de desterritorialização: primeiro, com mudanças nos locais das escolas até se fixarem, provisoriamente, em prédios específicos no centro de Mariana, quando ainda sofreram episódios de preconceito e exclusão fora dos muros escolares. Depois, com a chegada da pandemia de COVID-19, foram novamente privados dos espaços de aprendizagem. No período de distanciamento e isolamento social, muitos e muitas tiveram dificuldades de aprendizado sem o contato próximo de professores e professoras ou enfrentaram problemas de acesso a aulas remotas, que demandavam dispositivos tecnológicos e internet. 

Diante de tantos desafios, as escolas abrem suas portas para receber crianças e adolescentes atingidas e atingidos, provando a importância do afeto nesses espaços.

Por Eliene dos Santos, Sonia Sartori e Luciana Drumond

Com o apoio de Karina Gomes Barbosa e André Luís Carvalho

Foto: programa de extensão Sujeitos de suas histórias/Ufop

A E. M. Bento Rodrigues sempre foi uma referência para a comunidade. Apesar de todos os desafios, a comunidade de Bento Rodrigues continua “resistente e unida” através da escola. Sempre trabalharemos em prol das necessidades dos nossos alunos.

Eliene dos Santos, diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues e moradora de Bento

A escola de Paracatu, antes do rompimento, além de ser o local de formação dos estudantes, era também o centro de referência da comunidade, um local onde todos poderiam solicitar ajuda, era um espaço de integração com a comunidade e com as famílias.

Hoje, a escola de Paracatu continua de portas abertas para receber a comunidade e as famílias, porém é notório que a escola perdeu um pouco a característica de ser o ponto de encontro, celebração e referência. Não há como saber se, de fato, ocorrerá o reassentamento ou quando este ocorrerá, porém a esperança é que aconteça em breve e que a escola seja, além de um referencial no processo educativo, um espaço de acolhimento, trocas de saberes, um local para reconstruir a identidade e as memórias da comunidade, que seja um local de integração com as famílias e a comunidade, onde todos e todas se sintam aceitos, respeitados e felizes.

Luciana Drumond, professora da Escola Municipal de Paracatu de Baixo

O papel da escola, com os alunos e com a comunidade escolar, ao longo desses anos, está sendo – mas foi mais – desafiador. Quando você trabalha com pessoas, você trabalha com sentimento, com perdas. No início, em 2017, quando assumi a direção da escola, a perda deles, de uma identidade, do cotidiano, estava bem recente ainda. Moravam em um distrito, muitos nasceram em Paracatu, construíram família lá e, de repente, em questão de minutos, não tinham mais essa identidade. Então, como diretora, percebi essa carência afetiva. Eles se sentiam, na época, muito indesejados aqui em Mariana e a gente tentou, de todas as formas, mostrar pra essas crianças e pra esses jovens, pra comunidade, que eles eram pertencentes à Mariana. Eles foram se aceitando mais, já não se importavam com a população julgando que eles estavam aqui como se não pertencessem a Mariana.

Sonia Sartori, diretora da Escola Municipal de Paracatu de Baixo

As marcas deixadas pelo rompimento da barragem foram percebidas em níveis físicos,  emocionais e psicológicos. E tudo isso afetou bastante os processos de aprendizagem dos alunos. Foi um desafio muito grande colocar os alunos, que passaram por tantas mudanças de forma abrupta, em uma sala para aprender disciplinas, enquanto suas cabeças ainda não tinham processado as perdas e as mudanças. Eu não me sinto confortável de citar exemplos específicos, porque acredito que possa ser algum gatilho a algum aluno leitor, porém a mudança comportamental nos primeiros anos foi muito perceptível, alguns estavam mais agressivos, outros em um processo de buscar isolamento. Não consigo enumerar de forma objetiva os traumas, porém não acredito que essas marcas serão esquecidas por aqueles que a vivenciaram. 

Sobre a pandemia, ainda é cedo pra dizer sobre as marcas, porque tive pouco contato com os alunos presencialmente, porém observo que eles estão mais dispersos, com dificuldades de foco e atenção.

Luciana Drumond, professora da Escola Municipal de Paracatu de Baixo

Ficamos quase dois anos sem ter contato com os alunos, com a comunidade escolar. Essa questão dos aparelhos tecnológicos, que a gente teve que reinventar para poder levar um pouco de educação e de ensino para esses alunos, foi um pouco complicada. Está sendo ainda. Não é fácil estar perto e não poder ter o contato que a gente tinha. Então, as duas questões que a comunidade de Paracatu enfrentou – com a perda de identidade do espaço de origem, em que vivia; e não ter como ir à escola, que era o único lugar, o único espaço em que a maioria se encontrava – foram complicadas. Aos poucos, a gente conseguiu retornar presencial 100%, no final de 2021, bem na defensiva, seguindo mais regras, com mais cuidado com a saúde emocional e física. 

A gente viu que os alunos estavam na expectativa de se encontrar, eles puderam ter esse contato novamente. A gente espera que consiga sair desses desafios, que todos nós estamos enfrentando, de forma tranquila, com a saúde mental e emocional restabelecida.

Sonia Sartori, diretora da Escola Municipal de Paracatu de Baixo

A pandemia trouxe consequências imensuráveis. É mais uma bagagem agregada a tantas outras, não é mesmo? Mas, graças a Deus, estamos alcançando excelentes resultados. O rompimento da barragem nos ensinou a viver um dia de cada vez. E a pandemia está nos trazendo grandes lições que levaremos para a vida toda. As relações humanas são importantes e, fazendo um paralelo entre esses dois acontecimentos, temos a certeza do quanto a escola é importante. As relações humanas são importantes.

Eliene dos Santos, diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues e moradora de Bento