Reinventar a vida, às pressas e sem despedidas

“Veio um barulho, mas um barulho enorme e quando a ponte caiu, todo mundo achou que era um armário que tinha caído e ninguém ligou muito, não. Meu ex-cunhado chegou e falou ‘a barragem rompeu e a ponte caiu’. Todo mundo se assustou porque ninguém tinha noção e conhecimento do que era uma barragem. A gente ficou 30 dias na casa da minha avó, sem roupa e sem comida, porque as duas pontes que davam acesso a Ponte do Gama caíram e nós ficamos por lá até que fizessem uma estrada para dar acesso ao distrito.”
Camila Sant’ana, moradora de Ponte do Gama

Quando a enxurrada de rejeitos da mineração chegou até os distritos e subdistritos de Mariana (MG) no fatídico dia 05 de novembro de 2015, data que marca o rompimento da barragem de Fundão, diversas comunidades sentiram a perda de familiares, lamentaram os impactos aos seus territórios, o desaparecimento de seus bens e o fim de todo um modo de vida. Naquele dia, a lama não levou apenas as casas, mas também os laços afetivos e os planos de futuro das pessoas que ocupavam os territórios impactados pelo que se conhece como o maior crime socioambiental do país. As paisagens foram modificadas, as rotinas alteradas e os sonhos rompidos, tal qual a estrutura da barragem que levou apenas alguns minutos para se desfazer.
As violações causadas pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP não cessaram após o rompimento da barragem, pelo contrário: o histórico de infrações contra as comunidades atingidas só tem aumentado nesses últimos oito anos. Os reflexos do rompimento podem ser percebidos nos relatos de cada sujeito que presenciou a tragédia e que ainda carrega as lembranças de uma vida tranquila nas comunidades que já não existem mais.
Camila Sant’ana, estudante e moradora de Ponte do Gama, subdistrito de Mariana e território que foi atingido, tinha apenas 11 anos quando a barragem se rompeu. Aos 18 anos, a jovem ainda se lembra do dia que alterou para sempre a dinâmica de sua família. Na época, Camila estudava em Monsenhor Horta, distrito próximo à zona rural em que morava. Em decorrência do rompimento da barragem e do bloqueio de acesso aos territórios vizinhos, a jovem e seus irmãos não puderam frequentar a escola.
“A gente ficou um mês sem ir para a aula porque não tinha acesso. Minha irmã estava no terceiro ano e eu estava no sétimo ano. Teve até um problema no final do ano para me formar, porque tanto eu quanto dois amigos que moravam em Paracatu e que estudavam lá em Monsenhor Horta ficaram sem nota. A gente mesmo teve que conversar com a escola para ver como resolveria essa situação.”
A impossibilidade de acesso à escola e a falta de material escolar foram apenas o início dos desafios que Camila e outros estudantes dos territórios atingidos tiveram que enfrentar para continuar os estudos. As dificuldades foram intensificadas na medida em que precisaram se organizar para realizar a mudança de endereço para a sede do município de Mariana e, consequentemente, para um novo ambiente escolar.
O afastamento inesperado da zona rural para o centro urbano demandou adaptações para diversas famílias atingidas que, em vez de acolhimento, encontraram um ambiente hostil, situação que exigiu força diante de uma série de preconceitos no lugar que deveria ser um lar. Na nova escola, Camila ouvia piadas direcionadas a ela e outros amigos que sofreram deslocamentos forçados por conta do rompimento.
Preconceito e perdas

Dali em diante, ser identificada como atingida ou revelar o distrito de origem passou a ser sinônimo de apreensão, não apenas para Camila. O medo de se identificar ou ser reconhecido como atingido tem sido constante no cotidiano de muitas pessoas que deixaram seus territórios de forma abrupta para continuar a vida em Mariana, até mesmo entre as crianças e jovens no contexto escolar. Para Elodia Honse Lebourg, pesquisadora e doutoranda em educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), a exposição representa um grande receio para as pessoas que compõem as comunidades atingidas, e existe o medo de sofrer preconceitos e retaliações. “Eles não revelam que são jovens atingidos para evitar o que chamam de olhares, julgamentos e reações maldosas”, afirma.
Desde 2015, a pesquisadora estuda questões que envolvem as trajetórias juvenis aplicadas ao contexto do rompimento da barragem de Fundão. Seu interesse está em entender quais são os principais desafios que envolvem esse grupo, bem como as particularidades que abrangem seus processos de socialização. Para isso, ao longo da pesquisa, foram entrevistados jovens de alguns dos territórios atingidos — Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Camargos. Elodia ressalta que a tese ainda está em andamento e os dados estão em análise, mas é possível observar algumas características e relatos em comum entre os jovens que vivenciaram o rompimento da barragem e seus desdobramentos.
O preconceito direcionado a estudantes dos territórios atingidos ocorreu sobretudo entre 2015 e 2016, anos iniciais do rompimento, revela Elodia. Os jovens que entrevistou em sua pesquisa, em maioria de Bento Rodrigues, contaram que eram chamados de “pé de lama, da lama, volta para a lama, bebe lama, marilama”, entre outros xingamentos. “Eles sofreram muito enquanto ocupavam o espaço da escola e agora voltam a sofrer, porque no momento se fala mais sobre os reassentamentos, as indenizações e as casas que “parecem Alphaville’”. Em 2023, oito anos após o rompimento da barragem, é perceptível que muitos jovens ainda estão fragilizados e sofrem com as consequências do crime socioambiental. Para além do sofrimento observado por Elodia, há o que ela chama de “fraturas dos laços sociais”. Os jovens dos territórios atingidos, apesar de frequentarem o mesmo espaço escolar, se afastaram e não mantêm contato, seus vínculos identitários não foram mantidos e alguns sonhos ficaram apenas na imaginação.

Esse comportamento também foi observado pelos profissionais que compõem a equipe do Conviver, serviço para acompanhamento em saúde mental e atenção psicossocial criado para assistir as famílias atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. A assistente social Viviane Amaral e as psicólogas Janaína Moraes e Lidiane Rezende observam que esse afastamento pode ser consequência da forma como os moradores dos territórios atingidos foram alocados em Mariana, ou seja, em diferentes bairros, propositalmente separados. Dessa forma, o que antes era viver em comunidade, no centro urbano se tornou distanciamento dos vizinhos, ruptura dos vínculos afetivos e saudade dos modos de vida na zona rural.
“Eu lembro de uma pessoa que falava assim, ‘olha eu perdi as fotos do meu casamento, perdi as fotos do batizado do meu filho, perdi tudo que eu tinha nesse sentido’. A vivência não se perde, mas quando você perde um álbum de fotografia dessa importância, isso traz sentimentos muito fortes para as pessoas. Assim como a questão do deslocamento e da mudança de vida, porque eles tinham um hábito totalmente rural, tanto Bento quanto Paracatu, e quando chegam na sede, isso começa a ser um ponto de sofrimento para as pessoas que tinham espaço, que tinham terreiro, que tinham um quintal, que tinham horta, que tinham galinhas, e para as crianças que brincavam nas árvores e na rua de uma forma muito livre. Elas vieram para cá para morar em apartamento e aí não tem um lugar para plantar, não tem lugar para brincar, não tem lugar para correr, não tem lugar para fazer as coisas que gostam de fazer, não dá mais para sentar na porta para conversar com os vizinhos. Esses modos de vida foram muito alterados, foi um impacto muito grande para eles”, relembra Lidiane Ferreira, para explicar as dificuldades de adaptação enfrentadas por crianças, jovens e adultos dos territórios atingidos em um local longe de ser familiar e acolhedor.
Camila é uma das jovens que relata as dificuldades para se adaptar na cidade e ainda se lembra de alguns dos planos que cultivou na escola que frequentou em Monsenhor Horta.
“Eu tinha um grupo de oito amigas e era o nosso sonho formar juntas, com o mesmo vestido, mesma cor, tudo bonitinho e, depois, morar juntas aqui em Mariana, porque todas queriam fazer faculdade.”
O desejo de realizar a formatura com as melhores amigas nunca se realizou e nem todas ingressaram no ensino superior. Depois do crime, Camila não teve tempo de avisar aos amigos que iria embora de Ponte do Gama e que deixaria a escola. No dia 22 de dezembro de 2015, a Renova, ente interinstitucional criado para, em tese, gerir os processos de reparação das pessoas atingidas, avisou à família de Camila que deveriam se mudar para o centro de Mariana. Tudo muito rápido, porque havia um prazo para realocar as pessoas atingidas.
E foi assim, às pressas e sem despedidas, que crianças, jovens e adultos foram forçados a abandonar os territórios atingidos e deixar parte de suas histórias para trás. Depois de diversas transições de escolas e readaptações, Camila ingressou no ensino superior em 2021. Estuda Engenharia Geológica na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mas afirma que não possui interesse em trabalhar em atividades voltadas para a mineração da forma como é feita em Mariana. No entanto, mesmo querendo distância desta área, o tema ainda é algo que acompanha a jovem durante a graduação.
“Mineração é uma coisa que eu não quero, eu já entrei nessa faculdade sabendo que mineração não é para mim. Na faculdade a gente estuda sobre a barragem, a construção, como ela funciona e tem esses casos de passar vídeo de barragem rompendo para estudar como foi, como acontece e os erros que estão por trás.”
Reviver o trauma
Camila, além de estudar sobre o crime ambiental que gerou incontáveis perdas, ainda revive o trauma na universidade. A estudante conta que em uma de suas aulas, um professor sugeriu que as notas baixas dos estudantes, como as notas obtidas por sua turma, explicavam os rompimentos das barragens. O comentário gerou desconforto e, nesse dia, Camila não era a única pessoa atingida presente na aula; havia uma aluna de Brumadinho que perdeu um parente no crime que se repetiu em 25 de janeiro de 2019, quando houve o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão (Vale), causando a morte de 272 pessoas. Após a aula, Camila e outros colegas acolheram a estudante de Brumadinho que ficou visivelmente abalada por um comentário inapropriado.
A estudante da UFOP faz parte de uma geração de estudantes que conheceu de perto os impactos da mineração. Oito anos se passaram e muitas crianças de 2015 já são pessoas adultas, mas ainda presenciam e vivenciam a luta de amigos e familiares pela reparação integral dos danos sofridos e pelo restabelecimento de suas condições de vida. Em 2023, uma nova geração de crianças dos distritos e subdistritos de Mariana se preparam para iniciar suas vivências nos reassentamentos de suas comunidades, entre eles, de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Os reassentamentos ainda não foram concluídos, a escola de Bento deu início às atividades neste ano, na primeira semana de agosto. A escola de Paracatu ainda não foi inaugurada, mas segundo as promessas, 2024 será o ano da entrega.
No compasso da morosidade, o processo de reparação vai causando incertezas quanto ao futuro dessas comunidades, mas apesar da onda de rejeitos que se arrasta pelo tempo, ainda há esperanças pela conquista dos direitos que foram arrancados das populações atingidas. Nesse contexto, a manutenção de uma educação digna e de qualidade nos territórios marcados pela mineração é, sem dúvida, um dos pilares que sustenta essa luta.
Texto: Alexandre Coelho e Karine de Oliveira Costa
Apuração: Alexandre Coelho, Amanda Almeida, Karine de Oliveira Costa e Yasmim Paulino
Edição: Karina Gomes Barbosa
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