Lucro recorde da Vale mascara violência contra populações atingidas por desastres causados pela empresa

Três indígenas conversam à beira do rio, marrom, ao fundo

A Vale fechou 2021 com o maior lucro da história de uma empresa aberta no Brasil: R$ 121,2 bilhões. Com o resultado, mais de 300% superior a 2020, a Vale vai distribuir US$ 3,5 bilhões em dividendos aos acionistas, além dos US$ 7,4 bilhões pelo desempenho no primeiro trimestre. No balanço, a empresa elenca esforços contínuos para a reparação de danos causados pelo rompimento de barragens.

Por Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV)

A Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV) questiona a transparência e a honestidade do relatório anual publicado pela empresa, que omite e mascara informações relevantes sobre a atuação da mineradora nos territórios e junto aos trabalhadores, às comunidades e à natureza.

A Vale afirma manter uma “abordagem de engajamento proativa com as comunidades, criando oportunidades para um diálogo amplo e construtivo com foco no relacionamento de longo prazo e na construção de um legado para a sociedade”. Em Minas Gerais, no entanto, a Frente de Luta pelas Atingidas e Atingidos pela Mineração (FLAMa-MG) denuncia a perseguição de mulheres que expõem os danos no distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto. Já na comunidade de Socorro, em Barão de Cocais, moradores estão sendo processados pela Vale por terem regressado momentaneamente às casas que foram obrigados a deixar em 2019, para recuperar pertences e animais.

Ana Rita Souza Rodrigues, atingida, espera por reparação. “Sonhar em voltar, a gente sonha, mas, a cada dia, vai ficando mais difícil. A gente só quer justiça.” Um relatório do Ministério Público (MP) de março de 2022 feito em Barão de Cocais mostra que, de 783 entrevistados, 74,3% afirmaram ter tido a saúde mental prejudicada e 70,1% relataram ter sido obrigados a alterar hábitos ou costumes por causa da barragem. A estrutura está em nível 3 de emergência e a previsão da Vale é que seja descaracterizada até 2035.

Em julho de 2020, moradores de Socorro, Tabuleiro, Piteiras e Vila do Gongo denunciaram que a Vale dificulta o pagamento das compensações e chega a exigir de proprietários dos imóveis documentos inexistentes, além de não cumprir os prazos de pagamento quando há reconhecimento da necessidade de indenização. A Vale tem feito enorme pressão psicológica sobre essas comunidades, que, além do risco da perda de suas vidas e de conviverem com o medo de um novo desastre, ficam expostas à ameaça de que os benefícios (que são direitos) concedidos sejam cortados. Em setembro de 2020 moradores dessas comunidades invadiram a área isolada pela Vale e pela Defesa Civil Municipal para retornarem às suas casas. Dentre os auxílios que a mineradora buscava parar de pagar na Justiça, estão moradia (aluguel, água, energia elétrica, IPTU e TV a cabo), vale gás e cartão refeição.

“Depois do fato acontecido, das primeiras sirenes, tive problema psicológico e faço tratamento até hoje. Durmo à base de remédio. Então, a gente fica assim: ‘qualquer hora pode estourar [a barragem], qualquer hora pode acontecer uma fatalidade e não ter como sair’. Eu entrei até o ponto de me mutilar e não lembrar como”, diz uma pessoa atingida.

Nos últimos anos, a Vale descaracterizou sete das 30 barragens construídas à montante, como em Brumadinho. No entanto, a Lei Mar de Lama Nunca Mais (Lei n.o 23.291/2019) proibia a operação e ampliação desse tipo de barragens com limite até fevereiro de 2022. Diante do descumprimento do prazo, a Vale teve de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que prevê o pagamento de uma indenização de R$ 236,7 milhões por dano moral coletivo. O valor deve ser destinado a projetos que visem a segurança de barragens em Minas.

A Vale afirma que a reparação de Mariana, liderada pela Renova, teve seus programas acelerados, especialmente os de indenizações e reassentamentos. Apesar disso, centenas de famílias seguem sem ter os direitos reconhecidos, sem acesso a qualquer compensação e convivendo com um Rio Doce altamente poluído, que coloca em risco sua saúde e lhes nega o direito ao trabalho. Em 2019, a Justiça  homologou uma petição conjunta assinada pelo Ministério Público Federal e por Vale, Samarco e BHP referente à escolha das assessorias técnicas independentes para a reparação do crime na bacia do Rio Doce. Um ano depois, as empresas se negaram a custear os planos de trabalho elaborados pelas comunidades e passaram a questionar o tipo de assessoria que seria dada às populações atingidas. A Justiça Federal ainda não tomou providências quanto ao impasse.

Em Moçambique, desde 2007, a Vale é objeto de inúmeras denúncias de violações de direitos sobre a operação da mina de Moatize e do Corredor de Nacala. Em 2021, a Vale anunciou a venda de seus ativos no país. Até hoje, cerca de 1.365 famílias reassentadas na área da mina, comunidades inteiras reassentadas ao longo da ferrovia, fabricantes de tijolos e comunidades vizinhas que sofrem com a poluição da mina, aguardam compensação e o respeito a seus direitos. No ano passado, acionistas críticos denunciaram que a Vale Moçambique vinha negando acesso a documentos públicos sobre o empreendimento (relatórios de impacto ambiental, relatórios de monitoramento ambiental e relatório sobre a composição do pó emitido pela mina e que coloca em risco a saúde das comunidades vizinhas). Na assembleia, a diretoria da Vale afirmou que os documentos eram públicos e garantiu que os encaminharia, mas nunca o fez. Os relatórios e as compensações seguem sendo negados pela empresa.

O relatório financeiro da Vale foi apresentado na Assembleia-geral de acionistas da empresa, no dia 29 de abril. Pela primeira vez em 10 anos, parte dos acionistas não esteve presente, em rechaço à falta de transparência do balanço. Trata-se do grupo de acionistas críticos, integrantes da AIAAV, que priorizam seu direito de voz para denunciar violações de direitos humanos e ambientais cometidos pela empresa. A estratégia deste ano se dá em ações externas à reunião, para fortalecer iniciativas locais daqueles que foram vítimas da insustentabilidade da empresa brasileira que mais lucrou no último ano às custas de sofrimento humano e ambiental.

A AIAAV é uma rede que reúne, desde 2009, comunidades, trabalhadores, pesquisadores, movimentos sociais, sindicatos, entre outros, no enfrentamento dos impactos socioambientais da atividade da Vale.