Posto de saúde é inaugurado sem o conhecimento da comunidade

No mesmo dia em que a comunidade de Bento Rodrigues deveria estar comemorando a entrega do reassentamento, muitos(as) descobriram, na verdade, que o posto de saúde já havia sido inaugurado sem a presença da comunidade ou a ciência da Comissão de Atingidos. A inauguração do novo posto de saúde aconteceu às cegas, até mesmo sem a confirmação de que as obras tinham sido finalizadas. Embora recente, o prédio já apresenta trincas, o que levanta questionamentos sobre a qualidade da construção. A comunidade contesta, ainda, a inclusão dos nomes de representantes da Renova na placa de inauguração do patrimônio. Por mais que existam padrões a serem seguidos, esta não é uma placa qualquer, a construção do reassentamento levanta a possibilidade de diretrizes muito específicas, uma vez que não se trata de uma benfeitoria de uma empresa contratada por aqueles que cometeram o crime, mas da restituição dos danos causados. Além disso, todas as obras dos reassentamentos deveriam ser inauguradas em conjunto, de acordo com o desejo da comunidade, assim como as casas, quando todos(as) estiverem presentes no território. Apesar das desesperanças e das incertezas, no entanto, deve-se destacar a importância para a comunidade e a grande expectativa daqueles que, um dia, irão trabalhar e utilizar o posto de saúde.

Por Cláudia de Fátima Alves, Manoel Marcos Muniz, Maria Aparecida Sena e Mauro Marcos da Silva

Com o apoio de Joice Valverde e Júlia Militão

A inauguração do posto aconteceu no dia 23 de dezembro de 2020. Nós não fomos informados, nem comissão, nem atingidos, para estar lá na inauguração. Inaugurar posto de saúde, sendo que não têm casas? Esse posto de saúde vai servir pra quê, sendo que não tem morador lá? E ainda tem o seguinte: deveria inaugurar todo o reassentamento do Novo Bento Rodrigues completo, né? Fazer uma inauguração só, não inaugurar partes, o posto de saúde, depois a escola, quadras, e por aí afora. Porque não justifica ficar inaugurando as coisas em partes, tem que ter uma inauguração só, do Novo Bento, sendo que as casas mesmo são poucas que foram feitas. 

Manoel Marcos Muniz, morador de Bento Rodrigues

Pedi informações da Renova sobre quem estava presente nessa inauguração e por qual motivo não foi comunicado nem à comissão, nem à Cáritas, nem ao Ministério Público e muito menos à família da pessoa que leva o nome do posto de saúde. Até hoje não obtive resposta, mesmo porque a Renova está burocratizando o sistema e me informaram que eu tinha que abrir uma manifestação. Eu me recusei a abrir uma manifestação, porque o meu questionamento principal foi: “quando fizeram a inauguração usando o nome da matriarca da minha família, da minha avó, ninguém abriu manifestação pra consultar a minha família e muito menos mandaram ofício”. 

Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Rodrigues

Foto: Joice Valverde/Cáritas – MG

Nós nem ficamos sabendo que o posto estava pronto e que eles inauguraram, acho uma grande injustiça. No dia que era pra entregar as chaves das casas, nós chegamos lá e ficamos sabendo que já tinha inaugurado o posto de saúde. Será que eles não viram as rachaduras no muro? Nós ficamos muito indignados com tudo o que está  acontecendo.

Maria Aparecida Sena, moradora de Bento Rodrigues

Pode ser pelo fato da Renova ter informado que entregaria os dois bens públicos no final de 2020, que era o posto de saúde e a escola. Mas isso não aconteceu, porque a escola não está concretizada e o posto de saúde, mesmo inaugurado, na última vez que passei lá, vi andaimes e funcionários trabalhando no teto. Então, há duas possibilidades: ou inaugurou antes do término da obra, ou inaugurou e a obra já está dando problema e já estão tendo que ser feitos reparos. 

Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Rodrigues

Foto: Joice Valverde/Cáritas – MG

Já existem pequenas trincas no posto, e isso é uma coisa que nós, atingidos, temos que observar muito, né? Observar, acompanhar aquelas trincas, se não estão aumentando, pra até mesmo cobrar deles caso elas forem aumentando.

Manoel Marcos Muniz, morador de Bento Rodrigues

Outra coisa, se nós não fossemos lá, eles não iam reparar o erro. Tem muita gente com esperança de voltar para suas casas, mas, do jeito que está indo, muitas não vão nem ver suas casas, é um absurdo. Nós estamos cansados de viver aqui em Mariana e de ser apontado pelas pessoas em todos os lugares que a gente vai, isso é muito triste. 

Maria Aparecida Sena, moradora de Bento Rodrigues

Trincas presentes na construção do posto de saúde inaugurado | Foto: Joice Valverde/Cáritas – MG

Patrimônio

No levantamento de expectativa, realizado em junho de 2016, junto à comunidade, ficou determinado, em uma das diretrizes, que os bens e as ruas lá de Bento continuariam com o mesmo nome no reassentamento. Porém não foi colocado, pela Renova, em momento algum, que se levaria o nome de personalidades da atualidade, muito menos que a Fundação Renova teria o nome, por meio do seu presidente, colocado nos bens públicos. Nessa placa de inauguração, o único nome que figura como o que já estava entregue no Bento original é o da minha avó, que dá o nome ao posto de saúde. Os outros atores, prefeito, vice-prefeito, secretário de Saúde, secretário da prefeitura, presidente da Renova… E, diga-se de passagem, a Renova está para restituir um bem que foi danificado, que foi destruído pelo maior crime socioambiental já cometido no Brasil. É, no mínimo, antiético a Fundação Renova figurar em uma placa de inauguração, seja com o nome do presidente ou com a logomarca, porque o que está acontecendo é a restituição de algo que foi tirado de forma criminosa. Eu já consultei a minha família e nós determinamos que, se for para o nome da minha avó figurar em alguma coisa que esteja junto ao nome da Renova, ou Samarco, ou Vale, ou BHP, nós não vamos autorizar e vamos pedir que seja retirado. 

Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Rodrigues

A importância para a comunidade

De 2005 até o presente momento, eu trabalho como Agente Comunitária de Saúde na Unidade Básica de Saúde de Bento Rodrigues e, no ano de 2015, iniciei o curso de Técnico em Enfermagem, pois, na comunidade, ainda não tinha e era um desejo meu trabalhar lá nessa função. Só que, em novembro do mesmo ano, aconteceu o rompimento da barragem, a vida de todo mundo mudou totalmente e o sonho de muita gente foi por água abaixo. Então, em Mariana, tivemos que nos adaptar a uma nova realidade, houve a fusão das duas comunidades que foram totalmente destruídas pela lama e, no município de Mariana, começamos a usar o mesmo espaço para os atendimentos em saúde, para acompanhar as famílias tanto de Bento, quanto de Paracatu. Foi um recomeço difícil. Diante de toda dificuldade e dos desafios que tivemos, o sonho da gente é voltar pra casa e tentar seguir a vida da melhor maneira possível. E isso não é diferente no trabalho. Claro que sonho em trabalhar no Posto de Saúde de Bento, que já foi concluído, inaugurado e ninguém da comunidade, nem mesmo a Comissão de Atingidos, ficou sabendo. Assim como eu e tantas outras pessoas que perderam sua referência de trabalho, nós sonhamos em continuar, dar o nosso melhor  pela comunidade.

Cláudia de Fátima Alves, moradora de Bento Rodrigues

Cláudia conhece, do lado de fora, o posto de saúde que um dia será seu local de trabalho. | Foto: Joice Valverde/Cáritas – MG