Mais uma tradição apagada

Fogão a lenha com parede manchada ao fundo

Depois de mais de seis anos de espera e angústia, algumas casas finalmente começam a ser restituídas, reconstruídas a passos lentos nos reassentamentos dos territórios de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, devastados pela lama da barragem de Fundão  — da Vale, Samarco e BHP —, em Mariana. No entanto, um momento que deveria trazer paz e conforto para as famílias atingidas se torna mais um pesadelo, assim como tudo o que tem cercado a reparação conduzida pela Renova, caracterizada por lentidão, autoritarismo e falta de transparência: os fogões a lenha pré-moldados usados nas novas casas não atendem às necessidades das comunidades.

Antes as comunidades estavam acostumadas com os tradicionais fogões a lenha de alvenaria, construídos à mão, muitas vezes por próprios membros da família, mas agora precisam lidar com equipamentos defeituosos, de qualidade inferior, que não preservam os modos de vida nem respeitam os saberes tradicionais da culinária caseira, da roça. O que pode parecer pequeno, na verdade, é mais uma forma de apagar a identidade e as tradições das pessoas atingidas. Não é apenas um fogão, são gerações de histórias, lembranças e sabores que não voltam mais.

Por Marta de Jesus Arcanjo Peixoto e Maria Auxiliadora Arcanjo Tavares
Com o apoio de Stephanie Locker Geminiani e Tatiane Análio

Mulher posa em frente a fogão a lenha
Maria Auxiliadora com o fogão ao fundo. Foto: Tatiane Análio

“A Renova não cumpre nada do que promete. Depois de tantas reclamações sobre o fogão a lenha da minha casa, a rede elétrica, a fiação, a porta, eles vieram aqui uma vez, não resolveram nada, prometeram que iriam voltar, já faz seis meses que não voltaram. Quando vieram, tiraram foto, mas não resolveram. A água daqui de casa não esquenta, não tem serpentina. No tempo de frio, como vamos tomar banho? O fogão não presta, as chapas não pegam, é um custo fazer comida. Eu já não tenho mais esperança que eles arrumem esse fogão, ele está aqui de enfeite. Eu não queria ser chata com ninguém, mas, na minha antiga casa, eu tinha um fogão que funcionava. Meu banheiro estava todo entupido de concreto dentro dos canos quando foi feita a construção, eles demoraram dois meses para arrumar, fiquei dois meses sem banheiro. E eles ficam com uma má vontade para arrumar, cheios de desculpas. Eu tenho que ficar ligando e pedindo. Eles me atendem como se nem ligassem. O fogão só serve pra encher a casa de fumaça, toda semana eu tenho que lavar o azulejo da minha cozinha. Se eu soubesse que seria assim, não deixaria eles terem construído.”

Maria Auxiliadora Arcanjo Tavares, moradora de Paracatu de Cima

Fogão a lenha
Foto: Tatiane Análio

“Quando eles [Renova] foram começar a fazer nossa casa, a gente falou com eles que a gente mesmo ia fazer o fogão, porque o fogão que eles fizeram pra minha tia e pra minha irmã [Maria Auxiliadora] não prestou, aí a gente falou que não quer uma coisa que não vai servir ou que depois vai ter que quebrar de novo. Eles falaram que, se a gente fizesse, eles não iam arcar com os custos. Como o fogão que eles iam dar era desses planejados, a gente falou pra eles trazerem o fogão, só não colocar dentro de casa: deixa ele do lado de fora que a gente vai fazer um dentro de casa e ele fica aí, depois a gente assenta. Eles não aceitaram, não quiseram, falaram: “assim não pode, o fogão não vai ser entregue, vocês vão fazer então”. Aí a gente foi e fez. Agora ele tá na fase de acabamento, não acabou ainda porque eles tão lá trabalhando e meus irmãos não podem trabalhar junto com eles, tem que esperar eles entregarem a casa pra fazer o acabamento do fogão, porque eles não deixam ninguém trabalhar junto com eles lá. Na roça, a gente tem tradição, tem serpentina no fogão a lenha, pra gente tomar banho. Eu quero o fogão com serpentina, então a gente mesmo que tá fazendo. Eles iam dar o pré-moldado, a gente não quis.”

Marta de Jesus Arcanjo Peixoto, moradora de Paracatu de Baixo

Fogão a lenha com parede manchada ao fundo
Foto: Stephanie Locker Geminiani