Ciclo de violência: quando a Justiça falha

Na manhã de sábado, 2 de setembro, Marino D’Angelo, morador atingido pelo rompimento da Barragem de Fundão, em Paracatu de Cima, passou por um episódio extremamente violento e injusto. Marino, que também integra a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), foi conduzido à Delegacia de Polícia Civil de Ouro Preto após um incidente que levanta sérias dúvidas sobre a possível criminalização das vítimas por parte das mineradoras Samarco, Vale e BHP e da Fundação Renova.

O evento crítico teve início quando funcionários da Renova invadiram a sua propriedade para realizar obras sem a devida autorização. O imóvel detém significado especial para a família de Marino, pois foi o lar de Dona Eni, mãe de Maria, sua esposa, que faleceu há pouco mais de 30 dias. Dona Eni partiu sem jamais ter recebido a devida reparação pelos danos causados pelo crime da Samarco, Vale e BHP. 

Afastados de sua comunidade de origem, dos modos de vida, da vizinhança, de amigas e amigos, restou à família o convívio forçado com funcionários da Renova. Segundo Marino, logo após o rompimento da barragem, com a desculpa de reconstruir a ponte que liga Paracatu de Cima a Águas Claras, prestadores de serviço da Samarco montaram um estacionamento e uma praça com equipamentos dentro da sua propriedade, sem comunicação prévia. Após muita cobrança, as empresas pagaram pelo uso do espaço. Entretanto, em 2020, o pagamento foi suspenso, mas o local continuou a ser usado. 

Foto: André Carvalho

Na semana anterior à condução de Marino à polícia, ele havia registrado boletim de ocorrência pela invasão de suas terras. “No dia que fiz o boletim de ocorrência, o policial falou comigo que eles estavam errados, que isso é invasão de propriedade. No sábado eu fui lá pra ver se tinha alguém mexendo, quando cheguei, o pessoal estava trabalhando e tinha dois guardas municipais. Nisso eu fui falar pessoalmente com os funcionários da Renova, parei a obra, e aí eles começaram a me provocar, falando que eu sou marginal. Eu falei: ‘rapaz, eu estou dentro do que é meu’. E ele começou a jogar beijos pra mim, pra me provocar. Jogou um monte de beijo pra mim”, conta Marino. 

Após isso, os funcionários da Renova conversaram com os guardas, que, em seguida, comunicaram a Marino que ele seria conduzido à delegacia. “Eu falei que não ia ser conduzido não, que estava defendendo o que é meu. Nisso eu caminhei pro meio da mata. Aí senti dois disparos, algo nas minhas costas. Não senti muito, foi como se um marimbondo tivesse me picado.” Marino foi atingido por dois tiros de taser, arma de choque que dispara um forte pulso elétrico. No Brasil, o uso do taser é recomendado a agentes de segurança pública em ocorrências que envolvam potenciais suicidas ou pessoas armadas com facas, logo, não havia absolutamente nada que justificasse esses disparos.

Próximo ao córrego, após ser atingido, Marino caiu na água. Quando conseguiu sair, foi conduzido à Policlínica de Mariana para exame de corpo de delito e remoção dos dardos. Logo depois foi encaminhado à delegacia. Nesse momento, para Marino, a dor psicológica foi maior que a física. “O que quero relatar é que é doloroso e vergonhoso uma pessoa que sempre fez o bem ser conduzida para fazer um exame de corpo de delito. Eu estava todo sujo, molhado e descalço, dentro da Policlínica, enquanto todo mundo olhava, sem entender o que estava acontecendo, pensando que eu era um marginal. É uma situação muito constrangedora. Fico me perguntando como funciona a Justiça em nosso país, porque vemos criminosos legalizados criminalizando pessoas de bem, pessoas honestas.”

No sábado, a deputada Beatriz Cerqueira, em post para redes sociais, destacou o seguinte sobre a situação: “o estado de Minas Gerais deveria proteger o Marino, vítima do crime da Vale, Samarco e BHP, com o rompimento da barragem de Fundão em 2015. Ele teve seu modo de vida destruído e até hoje não teve reparação. Mas Marino foi tratado como criminoso e não como vítima, diante de um conflito com a Renova, ao ser agredido, detido e conduzido até a delegacia. A situação é inaceitável, de total abuso da Renova e do Estado. O Estado que deveria proteger as vítimas do crime das mineradoras não cumpre seu papel e se torna também violador de direitos. Minha solidariedade ao Marino”.

No dia 21 de setembro, Marino e sua família solicitaram oficialmente serem incluídos no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) para garantir sua segurança. Segundo Lucas Kannoa, advogado do PPDDH-MG, o processo segue um protocolo rigoroso. Assim, já foi realizado um pré-atendimento e o caso será encaminhado à equipe para uma avaliação multidisciplinar. É possível que ocorra mais um atendimento na residência da família antes da formulação de um parecer de inclusão ou não inclusão.

“Atuamos há 13 anos com defensores ligados à resistência contra a mineração, principalmente ecologistas, e, depois do crime das barragens, com as pessoas atingidas. É um padrão de ameaças, que mostra um conflito planejado estrategicamente pelas empresas para ganhar tempo, impunidade e reduzir, no processo de reparação, seus custos de produção, sempre com um descaso pelos valores íntimos das vítimas”, pontua Lucas.

As condições que justificam a inclusão no programa são determinadas por lei, embora cada caso seja avaliado individualmente devido à natureza delicada dos temas envolvidos. Em resumo, para ser elegível, a pessoa deve ser defensora de direitos humanos, ambientalista ou comunicadora e, devido às suas atividades e militância, enfrentar ameaças à sua vida ou ser cerceada em sua capacidade de atuar em prol dessas causas.

Propriedade violada

Ao violar a propriedade privada de Marino e sua família, a Renova não apenas desrespeitou direitos constitucionais, mas também infringiu uma série de direitos individuais daqueles que vivenciam diariamente as consequências do crime ocorrido em 2015.

A Constituição Brasileira resguarda o direito à propriedade como uma cláusula pétrea, ou seja, um artigo que não pode ser alterado. Embora a propriedade particular possa ser relativizada em casos de necessidade ou interesse público, é essencial que, nesses casos, seja instituída uma servidão ou ocorra uma desapropriação da área com garantia de indenização prévia ao proprietário. 

No entanto, no caso de Marino e de sua família, seu direito de propriedade foi flagrantemente violado, uma vez que intervenções não autorizadas foram realizadas dentro dos limites de seu terreno. Como diversas outras situações, a Renova e seus representantes não apresentaram qualquer decisão judicial que legitimasse essas ações. Além disso, não foram fornecidas evidências de licenciamento ambiental que assegurassem ao proprietário que as obras não causariam danos futuros. 

O episódio, que resultou na condução de Marino à delegacia como autor de um crime, também levanta sérias preocupações sobre a possível criminalização de quem luta incansavelmente por justiça. Durante o confronto, Marino sofreu escoriações e foi atingido por tiros de taser, o que amplia as inquietações sobre a segurança das pessoas envolvidas na demanda pelos direitos das comunidades atingidas pelo desastre-crime socioambiental. 

Marino e sua família, assim como outras famílias e comunidades ao longo da Bacia do Rio Doce, têm buscado reparação há quase oito anos, enfrentando desafios contínuos e injustiças em sua jornada. Esse incidente de violência e violação dos direitos individuais, infelizmente, não está isolado, já que casos semelhantes parecem estar se tornando mais comuns ao longo da bacia. A situação urgente destaca a necessidade de proteger as comunidades atingidas e todas e todos os envolvidos na incansável defesa dos direitos humanos e do direito de se manifestar diante dos crimes causados por empresas mineradoras em todo o Brasil.

Frei Rodrigo Peret, membro da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais, pontua que este é um processo de inversão que transforma a vítima em criminoso e despreza a reparação. Ainda segundo ele, “esse crime continuado era possível dentro de uma arquitetura da impunidade, onde todo o processo deu poder à instituição criminosa para dizer sim ou não aos processos de reparação, em vez da penalização através da criminalização das pessoas responsáveis pelo que foi perpetrado, uma vez que todos sabiam que as investigações apontaram que eles tinham total conhecimento da possibilidade desse rompimento. O processo em que uma empresa criminosa se senta com a vítima e a submete a um chamado acordo é extremamente injusto. A Vale é reincidente nesse crime, ela tem conquistado, a partir desse crime e de Brumadinho, uma expansão de áreas, na medida em que outras barragens estão sob ameaça da possibilidade de rompimento, ela conquista territórios. Estamos diante de um processo extremamente injusto e, agora, de uma companhia que parte para a agressão das próprias vítimas. Isso mostra que a reparação é fictícia e que a empresa continua a cometer crimes”.

Família à espera: moradia negada

Após uma série de visitas registradas em atas, que envolveram a presença de funcionários da equipe de moradias da Renova, assessores da Cáritas, Marino, outros familiares e o atual proprietário do sítio que escolheram para morar, direito assegurado pelas políticas de reparação, surgiu um problema nas negociações. 

Segundo as atas dessas reuniões, um dos motivos para o interesse da família no imóvel era a estrutura adequada para os moradores e seus animais, já que a moradia atingida está comprometida com problemas estruturais graves. Ficou estabelecido que o atual proprietário do sítio se comprometeria a realizar reformas no local devido aos problemas identificados. 

Após a elaboração de um orçamento para as reformas, o proprietário manifestou interesse em alugar o imóvel. As obras, inicialmente voltadas para questões estruturais, acabaram sendo expandidas para atender às demandas de Maria, esposa de Marino, que solicitou reparos específicos. Ela, com a Renova e a Cáritas, acompanhou de perto o andamento das obras.

Após a conclusão das reformas, a família estava ansiosa para se mudar, mas se deparou com um novo obstáculo. A Renova alegou que o tamanho da propriedade era consideravelmente maior do que a moradia atual da família, que possui 30 hectares. A área alvo para aluguel tinha 50 hectares, mas registros feitos nas atas revelam que 35% desse terreno é de reserva florestal, o que torna a área útil praticamente equivalente à da residência atual da família. Mesmo assim, a Renova desistiu da locação.

Devido a essa diferença na interpretação dos tamanhos das propriedades, a família de Marino se encontra em uma situação difícil e continuam vivendo violações de direitos em um sítio que não oferece mais condições adequadas de vida para a família e seus animais. 

São recorrentes os problemas causados devido à falta de espaço e de trato em quantidade e qualidade para os animais. A Justiça determinou que o cuidado com as criações deveria ser subsidiado pela Renova, mas, na prática, isso não acontece. Em julho do ano passado, Marino quebrou uma das pernas ao tentar resgatar uma égua que estava presa em um atoleiro após sair para pastar em uma área mais distante. Apesar dos esforços, a égua não sobreviveu. Mais de um ano depois, os animais continuam sofrendo os impactos do descaso da Renova. A família D’Ângelo já perdeu as contas das perdas sofridas.  

A situação permanece sem resolução e a espera é angustiante. A resolução da mudança de moradia evitaria incontáveis problemas, atenderia às necessidades urgentes e proporcionaria bem-estar a essa família, que, como tantas outras, acumula traumas causados pela mineração predatória, mas a Fundação Renova parece ainda não ter compreendido isso.

Por Crislen Machado e André Carvaho