Da bateia às barragens

As relações históricas de Mariana com a mineração, que escolhe revelar seus ganhos e minimizar seus efeitos nocivos
Em uma curva da MG-129 que se cruza com a BR-356, na chegada a Mariana, se ergue a escultura O Garimpeiro. Produzida pelo artista plástico local Roque Pimenta em 2007, por encomenda da prefeitura, tem traços que lembram os corpos masculinos de Candido Portinari. A figura de homem musculoso, sem camisa e calça dobrada, usa um chapéu largo. Os pés descalços estão sobre um piso de seixos, como o fundo de um riacho, onde o corpo levemente inclinado para a frente segura uma bateia. Os braços da figura, de feições negras, têm as veias saltadas de um trabalhador exausto da labuta.
A obra de cerca de 2,5 metros é feita de cimento sobre armação de concreto, segundo Robinson Rodrigues de Oliveira, o Grilo, um dos filhos de Roque. Conhecido como Roque dos Leões, por conta dos dois grandes felinos de cimento que repousam à frente de sua casa, no bairro Rosário, ele está acamado em consequência de um AVC e não fala mais. Mas tem mais de 30 obras espalhadas por Mariana e distritos.

Nenhuma delas tão simbólica como O Garimpeiro, que, na chegada à cidade mineira, anuncia a verve mineradora de Mariana. Vocação também figurada na bandeira da cidade, onde figuram um bandeirante paulista munido de mosquetão e espada e um garimpeiro descalço, com pá e picareta. No centro, a inscrição em latim Vrbs mea cellvla matter: “Minha cidade é a célula mãe”, alusão à condição de primeira cidade mineira ostentada por Mariana — não à toa, muito chamada de Primaz de Minas. A história de Mariana é mesmo demarcada pela mineração: o aniversário da cidade é no dia 16 de julho, data em que teriam sido encontradas as primeiras pepitas no Rio do Carmo, em 1696. Indícios que parecem construir, usando as palavras de Carlos Drummond de Andrade, um “destino mineral” similar ao da sua Itabira.
Primeira cidade, primeira cidade mineradora. A presença simbólica dos garimpeiros demarca a relação fulcral e material entre Mariana e a mineração, mas também evoca um passado romântico em que o minério era extraído no Rio do Carmo ou nos buracos de sari das minas do Gogô, majoritariamente por pessoas escravizadas e de modo artesanal. Nada mais distante do cenário contemporâneo minerário local. O garimpo tradicional subsiste como fonte de renda e modo de vida para pequenas comunidades, perseguidas pelas grandes mineradoras e, muitas vezes, não reconhecidas pelos poderes locais. Mas a cara da exploração mineral em Mariana, hoje, envolve cifras milionárias, multinacionais, milhares de empregados, equipamentos colossais e muita violência institucional (apenas insinuada pela arma na mão do colonizador que ilustra a bandeira municipal).
Após o fim do ciclo do ouro, no século XIX, Mariana era uma cidade pequena. Na década de 1960, a cidade tinha cerca de 7 mil habitantes, quando a mineradora Samitri, depois absorvida pela Samarco, se instalou na cidade para explorar o minério de ferro. Desde então, a expansão tem sido vertiginosa. O Censo 2022 aponta um crescimento populacional de 13,22%, contra 6,45% da média nacional. O dado, porém, pode estar subestimado: em abril, a Secretaria municipal de Meio Ambiente informou que a cidade pode ter até 90 mil habitantes, não os cerca de 61 mil estimados pelo IBGE. A análise foi feita com base no lixo produzido diariamente em Mariana.
A causa do inchaço é a população flutuante trazida pelas mineradoras. Além de Samarco e Vale, em 2021 a mineradora Cedro iniciou a exploração de ferro. O crescimento também é impulsionado pela atuação de diversas empreiteiras na cidade, como a Andrade Gutierrez. Outra consequência direta da mineração, já que as empresas estão na cidade para atuar na construção dos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu, comunidades destruídas pelo crime socioambiental de 2015.
Um dos efeitos mais perversos desse aumento populacional está na crise dos preços de aluguéis, que tem levado até estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que tem dois campi em Mariana, a abandonarem os estudos porque não conseguem morar na cidade. A UFOP calcula que a evasão chegou a 21% em 2022. O trânsito também sofre com a intensa atividade minerária. As vias que contornam a cidade e levam aos complexos de exploração têm engarrafamentos dignos de capitais nos horários de pico, devido ao fluxo intenso de caminhões, caminhonetes e ônibus que transportam trabalhadores indo e vindo das minas — como a extração funciona 24 horas por dia, há constantes trocas de turnos.
As ruas internas, preparadas para um trânsito interiorano e delimitadas pelas regiões tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1945, também não aguentam o intenso tráfego de veículos pesados. Já houve casos de danos estruturais em casas coloniais do Centro Histórico, como os jornais locais noticiam de tempos em tempos.

Além dos transtornos diários e do colapso na infraestrutura, a presença da mineração no cotidiano da cidade tem outros sinais, mais sutis. Os uniformes andando em grupo pela cidade no almoço ou no fim do turno — verde para a Vale, azul claro para a Samarco, azul escuro para a Cedro, macacões para os operários e o azul acinzentado da Renova; as caminhonetes e SUVs brancos com a indefectível listra vermelha de segurança, as iniciais da empresa terceirizada e, às vezes, a bandeirinha de sinalização; as placas com nomes de ruas patrocinadas pelas mineradoras; a poeira escura que cobre móveis das casas nos bairros mais próximos das áreas de lavra; as logomarcas das empresas, que patrocinam quase todos os eventos culturais e esportivos.
Desde 2015, as mineradoras não conseguem se livrar também da associação ao maior crime socioambiental do país, que deixou 20 vítimas fatais, milhares de pessoas atingidas ao longo da Bacia do Rio Doce e impactos socioambientais até o litoral do Espírito Santo. Para a professora da UFOP em Mariana e integrante da Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMa-MG) Kathiuça Bertollo, “o dia 05 de novembro de 2015 escancarou o quão violento é o contexto da mineração extrativista sob os marcos do capitalismo dependente. Explicitou que não há sustentabilidade, respeito à vida humana e ao meio ambiente-natureza com este atual modelo de mineração”.
O rompimento da barragem de Fundão, há oito anos, demarca uma série de violações de direitos que se repetem cotidianamente. “É notório o quanto o município, seja na sua área urbana ou rural, está subordinado e vivencia inúmeros processos de violência desencadeados diretamente pelo processo econômico-produtivo da mineração e pelo processo de reparação, que tem se mostrado moroso e ineficiente”, destaca Kathiuça.
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No Cabanas, as placas de ruas são patrocinadas pela Samarco. Foto: Wilson da Costa Trabalhador volta para casa no bairro Colina, típico de trabalhadores da mineração. Foto: Wilson da Costa Engarrafamento em horário de pico na avenida que leva às minas. Foto: Wilson da Costa Uma das três mineradoras em Mariana, a Cedro patrocina obras na cidade. Foto: André Carvalho Ônibus de várias empresas percorrem a cidade transportando trabalhadores. Foto: André Carvalho Pontos de ônibus são também pontos de espera dos transportes para as minas. Foto: André Carvalho No Morro Santana, região repleta de buracos de sari, as ruas têm nomes de minerais. Foto: André Carvalho Uniformes da mineração são presença comum nos varais marianenses. Foto: André Carvalho
Na lavanderia, uma pilha de macacões está estendida no chão para receber jatos de água. A sujeira entranhada deixa o líquido que escorre marrom. São pistas como essa que indicam a presença maciça do que José Miguel Wisnik chama de “máquina mineradora”. Parece, mesmo, uma “cultura do ferro entranhada nas coisas e nas pessoas”, como ele escreve no livro Maquinação do mundo a respeito de Itabira — mas poderia ser de Mariana. Nessas cidades minerodependentes, a sensação, conforme comenta Wisnik, é que não são as mineradoras que estão instaladas na cidade, mas as cidades é que estão instaladas dentro da mineração — reféns, prisioneiras de uma “lógica geoeconômica do saque”.
Em Mariana, a indústria extrativista responde por 70% do PIB. O PIB per capita, que já chegou a R$ 86 mil em 2014, ficou em R$ 53,2 mil em 2020, ano em que a Samarco retomou gradualmente as atividades, com 26% da capacidade produtiva, após cinco anos parada depois do rompimento de Fundão. Em 2022, Mariana liderou o ranking de arrecadação das Compensações Financeiras pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), com R$ 317,3 milhões.
A economista Fernanda Faria, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), tem argumentado que a alta especialização produtiva de Mariana faz com que eventos de grande impacto, choques, como Fundão, comprometam não apenas a dinâmica mineradora, mas também atividades conectadas à área (como infraestrutura, equipamentos) e as indiretamente relacionadas, como serviços e comércio. Entre os problemas agravados pelo crime de 2015 estão aumento do desemprego, baixo dinamismo do comércio local e queda na arrecadação por vários anos, especialmente do CFEM.
Nos anos anteriores ao rompimento da barragem, a produção brasileira de minério de ferro chegou a representar 20% da produção mundial (em 2000), segundo dados do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram). Atualmente, Minas Gerais responde por mais de 50% da produção mineral do país. Desse bolo, o minério de ferro representa 63% da produção nacional. E Mariana é uma das pontas do chamado quadrilátero ferrífero, região que abrange 35 municípios mineiros.
A professora Kathiuça Bertollo explica que a minerodependência é “uma submissão material e econômica, mas para além disso, abarca os âmbitos políticos, subjetivos, afetivos e imaginários da própria vida das pessoas, seja do território ou das que migram em busca de emprego e melhores condições de vida”. Em Mariana, cujo PIB depende fortemente da atividade minerária, os efeitos danosos são vários. Os problemas que Kathiuça elenca são extensos:
- violência sobre a mulher
- exploração sexual
- prostituição
- alcoolismo
- tráfico de drogas
- assassinatos
- suicídios
- geração de “filhos sem pai”
- superexploração da força de trabalho
- acidentes e mortes no complexo produtivo-barragens
- terceirização e precarização laboral
- pagamentos de baixos salários
- turnos exaustivos
- inchaço populacional sem atendimento adequado dos serviços públicos (como a falta de moradia e o aumento de ocupações irregulares)
- destruição ambiental
- modificações na paisagem
- destruição de sítios arqueológicos
- morte da fauna e flora
- morte de rios e nascentes
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A retomada da Samarco depois do crime de 2015, junto com a chegada da Cedro, trouxe alívio às contas municipais, mas ampliou problemas antigos. Em 2022, a Samarco apresentou à população de Mariana e Ouro Preto o Projeto Longo Prazo. A proposta prevê ampliação das áreas de lavra no complexo de Alegria e novas pilhas de deposição de rejeito, mas deixou uma série de dúvidas e medos nas populações atingidas que acompanharam as audiências públicas.
A Samarco se instalou em Mariana em 1977 e, dois anos depois, a então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) chegou. Até o rompimento da barragem, era uma empresa adorada na região, elogiada por funcionários pela qualidade do ambiente de trabalho. Gerações familiares construíam a vida profissional na mineradora até a aposentadoria. As violências, acidentes e problemas eram apenas sussurrados.
O horror das imagens da lama, que correram o mundo, trouxe à tona a face brutal da mineração, que sempre existiu. Segundo dados do Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, em 2020 foram 851 conflitos registrados. Minas Gerais concentra o maior percentual de casos (45,8%) e 75% das pessoas atingidas pela violência minerária. Desse total, 21 conflitos foram em Mariana, pelo minério de ferro, e envolveram sobretudo disputas por água, terra e trabalho.
Kathiuça Bertollo, da UFOP, afirma que Minas Gerais é, literalmente, um campo minado. “Mariana não é diferente. É um território atravessado pela mineração e consequentemente pelos conflitos que estruturam essa atividade econômico-produtiva. Um exemplo de conflito que se colocou fortemente no contexto da pandemia foi o que ocorreu na comunidade de Vargem, em que uma mineradora chegou no território e causou expressivos impactos ambientais, sociais e comunitários, todos com caráter negativo”, conta.
A pesquisadora também aponta a chegada da Cedro, a terceira mineradora na cidade, como outra ameaça, especialmente pela proximidade com o centro urbano, com o reassentamento de Bento Rodrigues e com o distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto — ameaçado pelo risco de colapso da Barragem de Doutor.
Os conflitos diários relacionados à reparação e mitigação dos danos do rompimento da barragem de Fundão produzem violência contra sujeitos, comunidades e territórios. Uma delas é a comunidade quilombola Santa Efigênia. Kathiuça ressalta que a comunidade tem lutado para ser reconhecida como território quilombola e atingido por Fundão. “Pelos relatos que tenho recebido, o processo de reparação está impactando muito violentamente o modo de vida das pessoas desta comunidade”, lamenta.

O domínio da mineração pelo território marianense é tão grande que escolhe o que mostra e o que esconder, sem nenhuma preocupação com memória, rastro, história e responsabilização. O Garimpeiro do Roque dos Leões, que permanece solitário numa curva de estrada, ilustra bem esse jogo de mostrar e esconder: não há uma placa com o nome do artista ou algum dado técnico. A obra não aparece em nenhum mapa turístico ou é listada no site da Prefeitura. O banquinho que havia para alguém sentar, embaixo do sol (quase impossível chegar lá a pé…), foi arrancado na pandemia. A antiga placa com os dizeres “Aqui foram colhidas as primeiras pepitas” também desapareceu. Da lixeira, sobrou um pedaço de ferro retorcido. E, para coroar esse ponto estranhamente instagramável mas anônimo, O Garimpeiro está de frente para um letreiro em rosa, amarelo, verde, vermelho e azul que anuncia: “Eu <3 Mariana”.
Texto: Karina Gomes Barbosa
Fotos: André Carvalho e Wilson da Costa
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